Pós-surrealismo.
“Muito já se lamentou — precisamente após os surrealistas — a desaparição de determinadas relações idílicas como a amizade, o amor, a hospitalidade. Não nos deixemos enganar: a nostalgia de virtudes mais humanas no passado limita-se a obedecer à necessidade futura de avivar a noção de sacrifício, demasiado contestada. De agora em diante não poderá haver nem amizade, nem amor, nem hospitalidade, nem solidariedade onde existir abnegação. Sob pena de reforçar a sedução do desumano. Brecht exprime-o com perfeição na seguinte anedota: como exemplo da boa maneira de prestar serviço aos amigos, o senhor K., para o máximo prazer daqueles que o escutavam, contava esta história. Três jovens foram a casa de um velho árabe e disseram-lhe: «O nosso pai morreu. Deixou-nos dezoito camelos e no testamento dispôs que o mais velho fique com a metade, o segundo com um terço e o mais novo com um nono. Não conseguimos chegar a um acordo a respeito das partilhas. Cabe-te tomar a decisão.» O árabe reflectiu e disse: «Verifico que, para poder fazer a partilha, vos falta um camelo. Há o meu, é o único que tenho, mas está à vossa disposição. Fiquem com ele, façam a partilha e tragam-me apenas aquilo que vos sobrar.» Eles agradeceram-lhe por esse serviço de amigo, levaram o camelo e partilharam os dezoito animais: o mais velho recebeu metade, ou seja, nove, o segundo um terço, ou seja, seis, e o mais novo um nono, ou seja, dois. Com espanto, quando separaram os seus camelos, sobrou-lhes um. Devolveram-no ao velho amigo, renovando os agradecimentos. O senhor K. dizia que essa forma de prestar serviço de amigo era boa, porque não exigia o sacrifício de ninguém. O exemplo merece ser alargado ao conjunto da vida quotidiana com a força de um princípio indiscutível.”
Raoul Vaneigem, Arte de Viver Para a Geração Nova, letra livre.