Sem teatro.

Lembro-me de, quando era mais nova, fazer muito teatro. Além das peças no colégio, em que escolhia sempre o inferno do Auto da Barca, produzia muitas sem palco. Para existir, tinha de desempenhar o papel de obediente, eloquente, mas sem confrontar, bem comportada, mas socialmente expansiva, demonstrar riqueza, sem ostentar, destacar-me, sem fazer demasiado ruído, ser sexy, mas pura e inocente, magra, mas com apetite, belíssima, mas sem vaidade, aluna de excelência, sem estudar muito, inteligente, mas não ameaçadora, culta, mas sem opinião. Ganhei várias coisas a fazer estas personagens, sobretudo depressões profundas.

Foi apenas quando me despi delas, em atos de coragem, uma após a outra, que comecei a viver. Lembro-me do primeiro dia em que não acordei angustiada. Tenho uma fotografia dessa manhã, que guardo até hoje. Depois de tantos anos de existência, foi o primeiro em que senti paz. Vivia sozinha, tinha dificuldade em pagar as contas, mas estava rodeada de pessoas que me apreciavam, sem maquilhagem, se falasse muito ou não dissesse nada, quando achava ser a melhor ou na fragilidade absoluta. Foi nesse momento, quando não precisei ser nada, que pude finalmente começar a ser tudo.

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