Na aula de revolução.*
“No quarto desmascaramento, indiquei a singular dupla estrutura do saber marxista: é um composto de uma teoria emancipadora e de uma teoria reificadora. A reificação caracteriza aquele saber que aspira a dominar as coisas. Nesse sentido, o saber marxista era desde o início um saber de dominação.
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Foi desde sempre um diktat demasiado rigoroso da “linha justa”. Desde sempre, destruiu irascivelmente toda e qualquer alternativa prática. Desde sempre, declarou à consciência das massas: «Sou o teu mestre e o teu libertador, não terás outro libertador senão eu! Toda e qualquer liberdade que vás buscar a outro lado é um desvio pequeno-burguês».
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Marx transmutou-se em professor histórico-lógico e em protector do proletariado, que identificava como o aluno predestinado da sua teoria. Queria tornar-se o seu grande libertador, intervindo como professor do movimento operário na marcha da história europeia.
(Stirner representava nada mais do que a alternativa lógica e estratégica à solução marxista).
A célebre obra póstuma Ideologia Alemã é, em grande parte, um ataque contra Stirner, que Marx e Engels conduziram com uma verve nunca utilizada relativamente a um só pensador.
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Stirner pertence, tal como Marx, a essa geração da Jovem Alemanha que, no clima da filosofia hegeliana, com a sua formação na reflexão subversiva, desenvolvera um faro extraordinário por tudo o que «se passa na cabeça».
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Digamos cruamente: na cabeça dos seres humanos trabalham programas de pensamento e de percepção que são historicamente formados e que «mediatizam» tudo o que vai do exterior para o interior e do interior para o exterior. O aparelho humano do conhecimento é, de certa maneira, um relé interior, um posto de comando, um transformador, onde são programados esquemas de perceção, formas de juízo e estruturas lógicas. A consciência concreta nunca é algo de imediato, é mediatizada pela «estrutura interna».
Por princípio, a reflexão pode assumir três atitudes relativamente a essa estrutura interna recebida: pode tentar escapar-lhe «desprogramando-se»; pode mover-se nela tão desperta quanto possível; e, enquanto reflexão, pode abandonar-se-lhe, apostando na tese segundo a qual a estrutura é tudo. (…)
A ideia de Stirner é evacuar muito simplesmente a cabeça de todas as programações estranhas. (…). Stirner visa libertar o seu próprio interior da alienação. O elemento estranho instala-se em mim; reconquisto-me a «mim próprio» expulsando o elemento estranho. É possível ler centenas de páginas em que Marx e Engels se enervam ante esta ideia no fim de contas simples.
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Muito cedo, o mais tardar desde a sua polémica contra Stirner, surge no pensamento de Marx uma tendência para, quase na atitude de um jesuíta da revolução, ele próprio se prender ao processo da evolução histórica, que ele julga poder conhecer tanto como dominar. A teoria marxista espera aceder à dominação estabelecendo o sujeito da teoria como função da evolução. Julga poder conseguir dominar a história por auto-reificação. Fazendo-se instrumento do pretenso futuro, pensa poder fazer do futuro o seu próprio instrumento.”
Peter Sloterdijk, em Crítica da Razão Cínica.