Almas gémeas.
”Aprendi desde cedo a viver nas margens, num certo isolamento, salvo pelo quietismo do rio e a convulsão dos livros, os únicos lugares onde eu me sentia bem.
Já nessa altura era um spinozista antes de o ser, queria encontrar toda a alegria possível.
Depois do 25 de abril a Escola de Cinema fechou durante dois anos, portanto nem cheguei a entrar. Meti-me na política. Militei em pelo menos três partidos de extrema-esquerda. Partidos pequenos, mas asfixiantes, e fui sendo expulso de todos. Uma dessas expulsões foi “por desvio teoricista”, porque organizei umas leituras coletivas de livros que não eram bem vistos… de outro fui expulso porque dormi enrolado na bandeira do partido [risos]. Era tudo tão absurdo, e eu que não sou capaz de me entregar absolutamente a nada como era exigido nesses tempos… nunca consigo aderir totalmente a nada, não consigo evitar uma certa distância que me tornava uma pessoa “estranha” nesses ambientes fechados. Mas o que podia fazer se havia em mim essa fissura, essa incapacidade de adesão absoluta ao que quer que seja?
E fui-me afastando da Sociologia, porque é uma ciência que só pode funcionar a partir de grandes abstrações, visões totalizadoras da vida e dos problemas. Parte do princípio de que podemos compreender a totalidade do mundo a partir de uma teoria ou de uma série de conceito e sempre achei essa atitude uma grande arrogância. Acredito mais no poder inventivo da poesia.
A grande ilusão dos modernistas assentava na ideia de que através dessas abstrações poderiam chegar ao Real. Mas “o Real” é aquilo que excede tudo. Por mais muros que criemos historicamente, reais ou teóricos, tudo rumoreja por todo o lado, tudo está em permanente convulsividade.
Já dizia o Lacan, “o Real é o que estraga a festa”.
Porque o Capitalismo, como qualquer outra teoria, não explica tudo ou projeta uma lucidez ilusória.
Claro que, em teoria, tudo aquilo faz sentido, mas a prática da vida humana desmente sempre a perfeição das teorias, porque são sempre uma abstração.
Capitalismo como teoria parece-me manifestamente insuficiente.
Cada ato urgente que exige uma resposta e essa resposta não está pré-determinada por uma posição “imutável” e absolutamente certificada, tem que resultar de uma decisão livre. (…) uma falsa coerência, que nos obrigaria a ser coniventes com tudo seja e esteja decidido pela “direita” e a “esquerda”, consoante os gostos. Ora, esse princípio de coerência é a base da indignidade em política.
Sempre procurei pensar a an-arkhé — que não se pode confundir com o que se tornou o Anarquismo no qual não me revejo.
Ora quem está mergulhado na vida até ao pescoço sabe que nenhuma teoria ou abstração servem.
Não existe “sujeito”, existe sim uma trama de ligações inscritas sobre a carne e as formas, que são coisas muito mais fortes do que “o sujeito”. Tudo que existe é um conjunto de relações formadas por expansões do corpo.
O Real está a ser afetado por cada gesto ínfimo, por cada livro obscuro que é publicado, por cada palavra.
Vivemos num mundo movido pela força do acidente, da transformação, da metamorfose, o que nos indica que qualquer estrutura que vise controlar ou estabilizar o Real está condenada ao fracasso.
A ideia que o Platão desenvolve no livro O Banquete é fundamental: é a ideia de um mundo regido por Eros, deus das ligações, que se opõe ao caos e à desligação.
No princípio não era o verbo, eram as imagens.
Na visão comum considera-se que técnica é uma invenção humana, que por isso mesmo está ao nosso alcance, que a dominamos e podemos aplicar com segurança. Mas existe um elemento de exterioridade que excede as formas históricas da “técnica, as nossas teorias, laboratórios e máquinas. Como sabiam os antigos, pense-se em Aristóteles, a técnica é uma mimesis da Techné da natureza, da “Physis”, que conseguimos replicar, extrair, pôr a funcionar no mundo histórico. Veja-se o caso do espelho. O espelhar está já em qualquer superfície líquida, nas pedras polidas, mas fixá-lo num “espelho” é algo de novo, acrescenta algo que não existia, mas que é exatamente o espelho.
E fomos aprendendo a duras penas como a ilusão de controlar a História e controlar a Natureza está a levar-nos à beira da extinção. Precisa-se da ilusão para se poder viver, mas viver na ilusão do controlo deixa-nos impreparados para o pior. Na verdade, temos de partir dos problemas, um a um a um, e responder da maneira mais lúcida e potente possível.
A Técnica é um conjunto de ligações.
A Técnica é um conjunto de ligações, por isso o que fazem as técnicas matemáticas e digitais é explorar e intensificar a nossa potência de ligação. Por detrás da intensificação da nossa relação com o telemóvel ou com as redes de computadores está a potência e a complexidade das nossas ligações uns com os outros. Dada a infinidade das máquinas que se espalharam pelo mundo, autores como Marx e Heidegger tentaram reduzir a “técnica” à “tecnologia”, acreditando que assim poderiam circunscrever a sua força. Mas vivemos no delírio de grandiosidade de achar que as máquinas que extraímos da Natureza representam o nosso domínio sobre ela. Cada máquina que extraímos acrescenta, modifica o mundo, mas no Ocidente estivemos sempre presos a uma visão instrumental que diz que as máquinas são meros utensílios. Mas veja-se como o automóvel, como a técnica nos escapa sempre: é fácil aprender a conduzir um carro, a “dominar” a máquina, nas não somos capazes de resolver os problemas de trânsito, os acidentes, a poluição… não da mesma maneira. A ideia de instrumento que punha tudo à nossa disposição deixou de funcionar.
Daí a importância de não confundir “máquinas” com “técnica”.
Acredito que precisamos de aprender a amar as máquinas, desenvolver com elas uma “filia”, uma amizade.
Mas o que é o Apocalipse se não uma forma de impedir os outros de pensar, pois o medo não permite o diálogo, deixa-nos desmunidos perante as mudanças do Real.
Um óbice evidente é fazer a IA uma questão terminante, exigindo ser-se a favor ou ser contra. A IA e as suas máquinas relacionam-se com muitas outras, como as ligadas à energia ou à computação, bem como dispositivos históricos ligados ao trabalho, à guerra, à invenção, às artes, etc. É da criação de combinações mais potentes que tudo depende e é preciso intervir sobre as suas ligações, lutando contra as mais perigosas, as mais indignas, em favor de outras formas mais livres, justas ou belas.
A obra de arte é sempre uma forma de abertura, porque tudo o que acontece tem a potência de transformar, de alterar o Real, seja em grande ou pequena escala. Se toda a coisa adicionada ao mundo tem um poder de alteração a arte é, acima de tudo, um trabalho que tem a alteração como substância necessária. Daí a necessidade libertá-la dos moralismos e da submissão a programas, pois é única forma de ação onde tudo pode ser possível.
Para mim é importante não ser abstrato, nem essencialista, nem totalizante.
Como disse Giordano Bruno, “pensar é especular com imagens”.
Para mim a constelação parece-me melhor porque respeita a empiricidade selvagem do real, consegue articular conceitos, objetos e imagens a partir da “imagem” que constitui, e que é sempre nova e única. A constelação é aquela que mais está atenta a algo que é essencial que são as ligações.”
José Bragança de Miranda, Entrevista de Joana Emídio Marques, no Observador.