Sem vontade.
Sobre os debates «rousseaunianos» que têm acontecido por aí, tenho apenas três coisas a dizer. Primeira, não faço ideia de quem determina a «vontade geral», mas tenho verificado que as elites, tanto à esquerda como à direita, têm uma fórmula infalível para a conhecerem, ainda que possa assegurar-vos não ser a minha. Depois, não assinei qualquer contrato, muito menos social. Por último, mesmo que o tivesse feito, há muito que o teria anulado. Não me digam que se esqueceram da cláusula de rescisão.
Esmagados no processo.
Nas festas, finjo sempre não ver o coletivismo, não vá começar a desbobinar os seus dramas infindáveis. Na última, alegava que, por os ter reduzido em favor da comunidade, os seus desejos andavam a reaparecer-lhe em formato de doença ou violência. Achei aquilo muito esquisito e pensei: “Olha, mais um «eu» que desertou”.
O passado não está morto, apenas mal vestido.
Não se iludam, minhas caras, a vida das tradwives não é mais do que um palácio dividido em quartos para criadas.
Certezas platónicas.
Têm dito que sou incoerente por defender uma ideia e no dia seguinte a sua oposta, mas como saber qual é a verdadeira?
Menos demonstrações, mais provocações.
Andam para aí uns seres enciclopédicos a dizer que a filosofia não é phármakon, mas a questão é não poder ser outra coisa. Até podem conhecer todas as ideias, mas para que servem se não presentificadas através das ações? Prefiro a sabedoria de viver à de conhecer. Pensando melhor, quero as duas.
Pós-surrealismo.
“Muito já se lamentou — precisamente após os surrealistas — a desaparição de determinadas relações idílicas como a amizade, o amor, a hospitalidade. Não nos deixemos enganar: a nostalgia de virtudes mais humanas no passado limita-se a obedecer à necessidade futura de avivar a noção de sacrifício, demasiado contestada. De agora em diante não poderá haver nem amizade, nem amor, nem hospitalidade, nem solidariedade onde existir abnegação. Sob pena de reforçar a sedução do desumano. Brecht exprime-o com perfeição na seguinte anedota: como exemplo da boa maneira de prestar serviço aos amigos, o senhor K., para o máximo prazer daqueles que o escutavam, contava esta história. Três jovens foram a casa de um velho árabe e disseram-lhe: «O nosso pai morreu. Deixou-nos dezoito camelos e no testamento dispôs que o mais velho fique com a metade, o segundo com um terço e o mais novo com um nono. Não conseguimos chegar a um acordo a respeito das partilhas. Cabe-te tomar a decisão.» O árabe reflectiu e disse: «Verifico que, para poder fazer a partilha, vos falta um camelo. Há o meu, é o único que tenho, mas está à vossa disposição. Fiquem com ele, façam a partilha e tragam-me apenas aquilo que vos sobrar.» Eles agradeceram-lhe por esse serviço de amigo, levaram o camelo e partilharam os dezoito animais: o mais velho recebeu metade, ou seja, nove, o segundo um terço, ou seja, seis, e o mais novo um nono, ou seja, dois. Com espanto, quando separaram os seus camelos, sobrou-lhes um. Devolveram-no ao velho amigo, renovando os agradecimentos. O senhor K. dizia que essa forma de prestar serviço de amigo era boa, porque não exigia o sacrifício de ninguém. O exemplo merece ser alargado ao conjunto da vida quotidiana com a força de um princípio indiscutível.”
Raoul Vaneigem, Arte de Viver Para a Geração Nova, letra livre.
Insultos para todos.*
“22 de Janeiro de 1985
Agradeço a sua carta em que me informa da retirada de um dos meus livros da biblioteca de Nijmegen. E de que acusam o livro de discriminação por causa dos negros, dos homossexuais e das mulheres. E de que é sádico por causa do sadismo.
Receio, todavia, que o que está a ser discriminado seja o humor e a verdade.
Se escrevo coisas terríveis sobre os negros, os homossexuais e as mulheres é porque os que conheci eram assim. Há muitos “maus” – maus cães, má censura; até há “maus” homens brancos. Só que quando escrevemos sobre “maus” homens brancos, estes não se queixam. E será preciso dizer que existem “bons” negros, “bons” homossexuais, e “boas” mulheres?”
Charles Bukowski, Sobre a escrita, Alfaguara.
*Digo eu, que seleciono a opção “outro” nos formulários sobre género. Não é com censura que se acaba com o racismo, com a homofobia ou a misoginia. Ide ler A Violência e o Escárnio do Cossery e A Dominação e a Arte da Resistência do Scott para verem como se faz.
A loucura do dia.
“Será a minha existência melhor do que as dos demais? É possível. Tenho um tecto, muitos não têm. Não tenho lepra, não sou cego, vejo o mundo, alegria extraordinária. Vejo este dia fora do qual nada existe. Quem me pode roubar isso? E eclipsando-se o dia, eclipsar-me-ei com ele – pensamento, certeza que me transporta.
Amei alguns seres, perdi-os. Enloqueci quando sofri o golpe, porque é um inferno. Mas a minha loucura permaneceu sem testemunho, o meu desvario não veio a lume, apenas a minha intimidade era louca. Por vezes, ficava furioso. Diziam-me: Por que estás tão calmo? Ora, eu estava a ferver dos pés à cabeça. À noite, calcorreava as ruas, gritava; durante o dia, trabalhava tranquilamente.
(…)
Com razão, sobreveio-me a memória e vi que mesmo nos piores dias, quando me cria perfeita e inteiramente infeliz, era, no entanto, e quase sempre, extremamente feliz. Esta descoberta não foi agradável. Deu-me que pensar. Parecia-me que estava a perder muita coisa. Interroguei-me: não havia eu estado triste, não tinha eu sentido a minha vida a rachar-se? Sim, tal acontecera; porém, a cada minuto, quando me levantava e corria as ruas, quando permanecia imóvel no canto de um quarto, a frescura da noite, a estabilidade do sol levavam-me a respirar e a repousar sobre a alegria.”
Maurice Blanchot, A loucura do dia, Snob.
Todos temos medo de Virginia Woolf.
Na brochura que me ofereceram, ontem, à entrada do São João, Paulo Faria escreve:
“«Quem Tem Medo de Virginia Woolf» fez-me perceber que, quer gostasse quer não, eu era figurante daquele drama. Talvez tenha percebido, graças ao texto de Edward Albee, que não era feliz. (…) Tudo aquilo me era sinistramente familiar.”
Eu senti o oposto, uma comoção pelo privilégio de viver com a bondade, a delicadeza, a alegria e a solidariedade.
(Num deleite de quase três horas, interpretado admiravelmente por Anabela Moreira, Joana Africano, João Reis e Daniel Silva).
Linhas de fuga.
Ontem, passei o fim do dia a ler o Mil Planaltos do Deleuze e do Guattari, e cheguei à conclusão que sou uma máquina desejante, um corpo sem órgãos, mais rizomática do que arborescente, às vezes sofro de paranoia, mas apresento ainda mais sintomas de esquizofrenia. No fundo, sou quase nómada.
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