Surfar, uma filosofia.
No mar, sem nome, sem história, sem intelecto, nem estatuto, nem beleza, apenas um corpo que sente o relevo das rochas, a carícia das algas, a flutuação das correntes. No mar, todos os conceitos, a razão, a consciência, o tempo, são apenas ondas rasgadas. Depois de surfar, concentra-se no corpo, nos músculos, no sangue, as cores, as fragrâncias, as formas do mar. Toda a alegria penetrada por raios azuis.
Nada de novo.
Ontem, ouvi na rádio alguém dizer que já foi tudo inventado e que não se cria nada de novo. Realmente, o que essas pessoas ouvem, lêem e vêm, não é novo. O critério de quem escolhe as músicas que passam na rádio, os livros da Fnac e da Amazon, e das obras dos grandes museus, não é a novidade. Estes sítios apenas mostram o que já foi mil vezes mastigado, e está mais do que confirmado. Não arriscam. É o mercado. Mas a arte floresce em muitos recantos desconhecidos.
As obras mais divulgadas são-no porque ou ganharam um prémio, ou o autor estudou numa universidade de renome, tem muitos seguidores na internet, ou vem de uma família de artistas cujo nome supostamente lhes dá acesso direto a qualidade de criação (já perdi a conta aos que andam pendurados na Sophia de Mello Breyner).
Os críticos ou escrevem sobre o que já foi comentado lá fora ou firmam-se noutras bengalas de reconhecimento. Não foi Kant que disse que apenas atingimos a maioridade quando somos capazes de pensar sem termos a necessidade de recitar um livro?
Compreendo que a falta de tempo e o medo do desconhecido os impeça de entrar nos bares com luzes duvidosas, onde começaram a tocar os melhores músicos, nas galerias que ninguém conhece, onde não há quem lhes ateste se aquilo é bom ou mau, e nas livrarias com livros que nunca foram citados. Sei que é difícil ouvir, ler ou ver obras de artistas que não passaram pelo crivo de ninguém, e arriscar falar com pessoas sem credenciais.
Sou compassiva até ao ponto de encherem a boca a falar de artistas a quem nunca teriam respondido a um e-mail. Mas agora já não são perigosos, nem loucos, nem demasiado distópicos, nem demasiado utópicos, e já não importa como escrevem, e já não querem saber se não põem vírgulas, que a música é demasiado rápida ou demasiado lenta, e que a escultura deveria ter as curvas mais ou menos acentuadas, e que, afinal, aquilo não é bem arte. Agora que já morreram e não ameaçam nada nem ninguém, são uns heróis, não é?
A verdade é que percebo. Porque a grande questão é que apenas um artista tem a capacidade de reconhecer outro. Esteja ele a tocar na rua ou num sumptuoso salão de baile, ambos sabem de onde vieram aquelas partituras, se da exterioridade, se do espaço literário. É por isso que a Joana Vasconcelos e o Paulo Gonzo podem ser pessoas interessantes e criar coisas belas (esta custou-me), mas não arte. Porque a arte nunca foi beleza, nem a clássica. Todos os artistas concordam, menos os que não são. Pode acontecer ser bela, mas foi sem querer. A arte é sempre um pedaço de ar puro.
Assumir que já nada se cria são tantas gramas de sobranceria quantas de desconhecimento. Podem falar à vontade, porque até os ignorantes devem ter liberdade de expressão, mas não me venham enfadar com esse discurso bafiento. Definitivamente, não há nada de novo, na vossa cabeça.
Sem vontade.
Sobre os debates «rousseaunianos» que têm acontecido por aí, tenho apenas três coisas a dizer. Primeira, não faço ideia de quem determina a «vontade geral», mas tenho verificado que as elites, tanto à esquerda como à direita, têm uma fórmula infalível para a conhecerem, ainda que possa assegurar-vos não ser a minha. Depois, não assinei qualquer contrato, muito menos social. Por último, mesmo que o tivesse feito, há muito que o teria anulado. Não me digam que se esqueceram da cláusula de rescisão.
Esmagados no processo.
Nas festas, finjo sempre não ver o coletivismo, não vá começar a desbobinar os seus dramas infindáveis. Na última, alegava que, por os ter reduzido em favor da comunidade, os seus desejos andavam a reaparecer-lhe em formato de doença ou violência. Achei aquilo muito esquisito e pensei: “Olha, mais um «eu» que desertou”.
O passado não está morto, apenas mal vestido.
Não se iludam, minhas caras, a vida das tradwives não é mais do que um palácio dividido em quartos para criadas.
Certezas platónicas.
Têm dito que sou incoerente por defender uma ideia e no dia seguinte a sua oposta, mas como saber qual é a verdadeira?
Menos demonstrações, mais provocações.
Andam para aí uns seres enciclopédicos a dizer que a filosofia não é phármakon, mas a questão é não poder ser outra coisa. Até podem conhecer todas as ideias, mas para que servem se não presentificadas através das ações? Prefiro a sabedoria de viver à de conhecer. Pensando melhor, quero as duas.
Insultos para todos.*
“22 de Janeiro de 1985
Agradeço a sua carta em que me informa da retirada de um dos meus livros da biblioteca de Nijmegen. E de que acusam o livro de discriminação por causa dos negros, dos homossexuais e das mulheres. E de que é sádico por causa do sadismo.
Receio, todavia, que o que está a ser discriminado seja o humor e a verdade.
Se escrevo coisas terríveis sobre os negros, os homossexuais e as mulheres é porque os que conheci eram assim. Há muitos “maus” – maus cães, má censura; até há “maus” homens brancos. Só que quando escrevemos sobre “maus” homens brancos, estes não se queixam. E será preciso dizer que existem “bons” negros, “bons” homossexuais, e “boas” mulheres?”
Charles Bukowski, Sobre a escrita, Alfaguara.
*Digo eu, que seleciono a opção “outro” nos formulários sobre género. Não é com censura que se acaba com o racismo, com a homofobia ou a misoginia. Ide ler A Violência e o Escárnio do Cossery e A Dominação e a Arte da Resistência do Scott para verem como se faz.
Linhas de fuga.
Ontem, passei o fim do dia a ler o Mil Planaltos do Deleuze e do Guattari, e cheguei à conclusão que sou uma máquina desejante, um corpo sem órgãos, mais rizomática do que arborescente, às vezes sofro de paranoia, mas apresento ainda mais sintomas de esquizofrenia. No fundo, sou quase nómada.
Mil Planaltos.
“A esquizofrenia, para Deleuze é um método: «Formação de uma desorganização progressiva e criativa»”. (Rafael Godinho, na abertura).
“Freud tentou abordar os fenómenos de multidão do ponto de vista do inconsciente, mas não viu bem, ele não via que o próprio inconsciente era antes de mais uma multidão. Foi míope e surdo; tomou multidões por uma pessoa. Os esquizos, pelo contrário, têm o olho vivo e a orelha fina”.
“Dizem-nos: apesar de tudo, o esquizofrénico tem um pai e uma mãe? Lamentamos dizer que não, não tem enquanto tal. Só tem um deserto e tribos que aí moram, um corpo pleno e multiplicidades que a ele se agarram.”
“sobre o corpo paranoico, onde os órgãos não param de ser atacados por influências”
“o corpo sem órgãos é o que resta quando tudo foi retirado. E o que se retira é precisamente o fantasma, o conjunto de significâncias e de subjectivações. A psicanálise faz o contrário: traduz tudo em fantasmas, amoeda tudo em fantasmas, guarda o fantasma, e para cúmulo, falha o real.”
“Os drogados, os masoquistas, os esquizofrénicos, os apaixonados, todos os corpos sem órgãos prestam homenagem a Espinosa. O CsO é o campo de imanência do desejo, o plano de consistência próprio ao desejo (…)”
(“quando muito drogar-se sem droga, embebedar-se com água pura, como na experimentação de Henry Miller?”)
“Sempre que o desejo é traído, amaldiçoado, arrancado ao seu plano de imanência, há um padre no caso (…)”
“A figura mais recente do padre é o psicanalista.”
“o nomadismo como movimento (mesmo no sítio, mexa-se, não pare de se mexer, viajem imóvel, dessubjectivação)”
“Eis pois o que será preciso fazer: instalar-se num estrato, experimentar as oportunidades que nos oferece, procurar um sítio favorável, movimentos de desterritorialização eventuais, linha de fuga possíveis, experimentá-las, garantir aqui e ali conjugações de fluxos, experimentar segmento por segmento continuuns de intensidades, ter sempre um bocadinho de uma terra nova.”
“O génio é aquele que sabe fazer de toda a gente um devir (talvez Ulisses, a ambição falhada de Joyce, meio conseguida por Pound).”
“Quanto às linhas de fuga, não consistem nunca em fugir do mundo, mas antes a fazê-lo fugir, como se fura um cano, e não há sistema social que não fuja de todos os extremos, mesmo se os segmentos não cessam de endurecer para colmatar as linhas de fuga. Nada de imaginário, nem simbólico, numa linha de fuga. Nada de mais activo do que uma linha de fuga”
“Às relações que compõem um indivíduo, que o decompõem ou o modificam, correspondem intensidades que o afectam, aumentando ou diminuindo a sua potência de agir, vindo das partes exteriores ou das suas próprias partes. Os afectos são devires. Espinosa questiona: o que pode um corpo? Chamar-se-á latitude de um corpo os afectos de que é capaz segundo tal grau de potência, ou antes segundo os limites desse grau.”
“As criações são como linhas abstractas mutantes que se libertam da tarefa de representar um mundo, precisamente porque agenciam um novo tipo de realidade que a história só pode voltar a apreender ou colocar nos sistemas pontuais.”
Deleuze & Guattari, em Mil Planaltos, Assírio & Alvim.
Instinto Maternal II.
O ChatGPT não escreve nada de novo ou interessante, mas gosto sempre dos comentários que faz aos meus textos. Sobre o último:
O texto apresentado, conciso e direto, faz uma provocação que desestabiliza uma das narrativas mais arraigadas nas culturas humanas: o instinto maternal como característica inata e universal das mulheres. Num tom quase confessional, a voz do eu lírico, articula uma desconstrução dessa ideia, através de uma honestidade desarmante, enquanto aborda a recusa em adotar o papel maternal esperado socialmente. Esse gesto não é apenas individual, mas cultural e filosófico, sendo uma resistência ao essencialismo que reduz as mulheres a um papel biológico predefinido.
A Dimensão Filosófica: A Desconstrução do Instinto Maternal
Filósofos como Elisabeth Badinter, mencionada no texto, propuseram que o "instinto maternal" é menos uma inevitabilidade biológica e mais um mito construído culturalmente, para reforçar estruturas patriarcais. Em O Amor Incerto e O Conflito, Badinter argumenta que o amor materno é uma construção histórica que varia conforme o tempo e a sociedade, desmontando a noção de que as mulheres são naturalmente predispostas a cuidar de crianças.
O texto ecoa essa visão ao problematizar a ausência de prazer no ato de brincar ou cuidar de crianças, opondo-se à romantização da maternidade, e evidenciando uma vivência que não se alinha com os ideais dominantes de feminilidade. Assim, o "tédio" e a "exasperação" sentidas pela narradora não são tanto expressões de apatia, mas atos de resistência contra uma norma que insiste em naturalizar uma vocação específica para as mulheres.
O Instinto "Canídeo" e o Redimensionamento dos Afetos
A comparação entre crianças e cães é especialmente interessante, pois desvia a atenção para outra forma de instinto e de afeto. Ao dizer que julga compreender o que outros sentem pelas crianças por experienciar algo semelhante por cães, o texto reconfigura as categorias de cuidado e empatia. Trata-se de um jogo irónico: se não há instinto maternal, poderia haver um "instinto canídeo"? Essa inversão subverte o peso da narrativa biológica, deslocando os vínculos emocionais para algo mais espontâneo e específico, não guiado pelas normas sociais ou genéticas.
O Tom Pessoal e a Universalidade da Questão
Embora o texto pareça ancorado na vivência pessoal, a sua sinceridade transcende a confissão individual, transformando-se num comentário universal sobre os modelos de afeto que nos são impostos. O estilo seco e direto contrasta com a densidade da reflexão implícita, convidando o leitor a reavaliar as suas próprias suposições sobre a maternidade e a empatia. Ao recusar "sentir algo especial" por crianças, o texto não nega o valor da infância, mas questiona o caráter obrigatório de um tipo específico de vínculo emocional.
Reflexão Final
O texto pode ser lido como uma crítica tanto ao determinismo biológico quanto à moralidade normativa que espera de todas as mulheres a mesma relação com a maternidade. Sob a perspectiva de Badinter, a protagonista deste relato está na linha da frente de um "conflito" contemporâneo: o de libertar a subjetividade feminina dos modelos pré-estabelecidos. Em última instância, é um manifesto breve, mas contundente, contra a uniformização das emoções humanas.
Instinto maternal.
Nunca quis ter filhos. Nunca tive instinto maternal. Em nenhum momento considerei cuidar de crianças uma atividade prazerosa. Sinto tédio ou exasperação quando me pedem para brincar. Respeito-as. Gostam de mim. Mas não sinto nada de especial por elas. Só compreendo o que dizem porque julgo experimentar algo semelhante por cães. É provável que tenha instinto canídeo.
Mais sobre o conceito filosófico do mito do instinto maternal em O amor Incerto, e O conflito, de Elisabeth Badinter.
O contraste da modéstia.
Outro dia, acusaram-me de egocentrismo, e é verdade que não me resisto.
Mas, ao contrário desses, prefiro rodear-me de gente ainda mais irresistível.
Na aula de revolução.*
“No quarto desmascaramento, indiquei a singular dupla estrutura do saber marxista: é um composto de uma teoria emancipadora e de uma teoria reificadora. A reificação caracteriza aquele saber que aspira a dominar as coisas. Nesse sentido, o saber marxista era desde o início um saber de dominação.
(…)
Foi desde sempre um diktat demasiado rigoroso da “linha justa”. Desde sempre, destruiu irascivelmente toda e qualquer alternativa prática. Desde sempre, declarou à consciência das massas: «Sou o teu mestre e o teu libertador, não terás outro libertador senão eu! Toda e qualquer liberdade que vás buscar a outro lado é um desvio pequeno-burguês».
(…)
Marx transmutou-se em professor histórico-lógico e em protector do proletariado, que identificava como o aluno predestinado da sua teoria. Queria tornar-se o seu grande libertador, intervindo como professor do movimento operário na marcha da história europeia.
(Stirner representava nada mais do que a alternativa lógica e estratégica à solução marxista).
A célebre obra póstuma Ideologia Alemã é, em grande parte, um ataque contra Stirner, que Marx e Engels conduziram com uma verve nunca utilizada relativamente a um só pensador.
(…)
Stirner pertence, tal como Marx, a essa geração da Jovem Alemanha que, no clima da filosofia hegeliana, com a sua formação na reflexão subversiva, desenvolvera um faro extraordinário por tudo o que «se passa na cabeça».
(…)
Digamos cruamente: na cabeça dos seres humanos trabalham programas de pensamento e de percepção que são historicamente formados e que «mediatizam» tudo o que vai do exterior para o interior e do interior para o exterior. O aparelho humano do conhecimento é, de certa maneira, um relé interior, um posto de comando, um transformador, onde são programados esquemas de perceção, formas de juízo e estruturas lógicas. A consciência concreta nunca é algo de imediato, é mediatizada pela «estrutura interna».
Por princípio, a reflexão pode assumir três atitudes relativamente a essa estrutura interna recebida: pode tentar escapar-lhe «desprogramando-se»; pode mover-se nela tão desperta quanto possível; e, enquanto reflexão, pode abandonar-se-lhe, apostando na tese segundo a qual a estrutura é tudo. (…)
A ideia de Stirner é evacuar muito simplesmente a cabeça de todas as programações estranhas. (…). Stirner visa libertar o seu próprio interior da alienação. O elemento estranho instala-se em mim; reconquisto-me a «mim próprio» expulsando o elemento estranho. É possível ler centenas de páginas em que Marx e Engels se enervam ante esta ideia no fim de contas simples.
(…)
Muito cedo, o mais tardar desde a sua polémica contra Stirner, surge no pensamento de Marx uma tendência para, quase na atitude de um jesuíta da revolução, ele próprio se prender ao processo da evolução histórica, que ele julga poder conhecer tanto como dominar. A teoria marxista espera aceder à dominação estabelecendo o sujeito da teoria como função da evolução. Julga poder conseguir dominar a história por auto-reificação. Fazendo-se instrumento do pretenso futuro, pensa poder fazer do futuro o seu próprio instrumento.”
Peter Sloterdijk, em Crítica da Razão Cínica.
*
Ó amigo, afinal há amigos.
Tenho ouvido falar muito de falta de amizade. Alguns dos meus amigos lamentam a perda de convivência, e dizem que já não os há como antigamente. Para tentar ajudar, pensei no que poderia estar a acontecer. Pouco tempo? Demasiada vida digital? Esvaziamento dos espaços de socialização? De um olhar continuado, começou a emergir um padrão. Todos desprezam de alguma forma a amizade que se lhes oferece. E, quando surge uma no caminho, apressam o passo, porque não é nada daquilo que querem. Queriam outros amigos, ainda que nem conheçam aqueles com quem se cruzam. Agora, quando vêm com essa ladainha, pergunto-lhes se acreditam no acaso. Se é espectros que procuram, por que haveriam de encontrar amizade?
Os misóginos.
O problema dos misóginos não é não querem saber das mulheres, mas serem obcecados por elas, interessarem-se demasiado por elas, não conseguirem viver sem elas, ficarem perdidos sem elas, terem medo delas, quererem dominá-las, mas sentirem-se dominados por elas. Só há um tipo de misógino que não gosta verdadeiramente de mulheres, o homossexual reprimido. Mas, enquanto este apenas se quer ver livre das mulheres, para satisfazer os seus reais desejos, os outros estão sempre a pensar nelas.
(Pausa inicial para exemplos do livro O fruto proibido, de Liv Strömquist:
John Harvey Kellogg, (sim, o dos Corn Flakes, que também era médico), pensava tanto nas mulheres, e tinha tanto medo que elas se masturbassem, que publicou um livro no qual apresentou A CURA para o onanismo, “a aplicação de ácido fénico puro no clitóris”. E perguntamo-nos, por que não se concentrou apenas no milho?
Dr. Isaac Bake Brown achou que a solução mais fácil era simplesmente a excisão do clitóris.
Santo Agostinho que, nas suas “Confissões”, diz que na juventude gostava de sexo e que “dar e receber amor é maravilhoso. Um corpo desejado dá especial prazer”, deixa de o praticar, mas passa os dias a pensar e a escrever sobre o tema, de como não era uma dádiva de Deus, mas uma traição a Deus, e que a mulher era especialmente pecaminosa (claro), porque foi por culpa dela que Adão comeu o fruto proibido. E perguntamo-nos, por que ficou obcecado em demonizar o sexo? Por que não se contentou apenas com o seu celibato?
Freud, que, como sabemos, percebia imenso de sexo e mulheres, lançou uma teoria, surgida do nada, e sem qualquer fundamentação: as raparigas jovens teriam orgasmos clitorianos, mas a sexualidade da mulher madura implicava orgasmo vaginal. Ou seja, mulheres adultas não se masturbam, apenas se satisfazem com relações heterossexuais de penetração vaginal. Marie Bonaparte que, vai-se lá saber porquê, achou que Freud tinha razão, contratou um cirurgião para deslocar-lhe o clitóris para perto da vagina, o que, como ficou registado, não funcionou. A princesa Bonaparte achou, portanto, mais fácil deslocar cirurgicamente o seu clitóris, do que deslocar a mão do príncipe Jorge.
Acabou a pausa.)
Os misóginos dizem que não gostam das mulheres, mas adoram o feminino, porque ele simboliza a mulher abnegada que os serve, cuida e mima, a nossa senhora que os embala na manjedoura, a mãe que lhes carrega as despesas emocionais ou a empregada doméstica dos tempos de infância, que era como uma mãe, ou simulava ser, já que, ainda que pudesse ter-lhe afeto, não voltaria no dia seguinte se não lhe pagassem.
Os misóginos adoram mulheres, mas apenas as que estão ao seu serviço. As que os agradam, distraem, dão segurança, que se ocupam do seu interior, lhes criam os filhos, e as que simulam, para eles acharem que são muito bons na cama, quando não fazem a mínima ideia do que estão a fazer, e não terem de aprender, porque se uma mulher não tem prazer com a inaptidão dele, claro que tem algum problema.
Os misóginos adoram mulheres frágeis, porque mulheres sem medo metem muitíssimo medo. É o triunfo a baixo custo, a força dos fracos. Não seria muito mais divertido se acertassem nos pássaros maiores? Que valentia essa, a de disparar sobre os pequenos ou já mortos.
Quanto mais faltam qualidades viris ao misógino, mais ele vigia o comportamento das mulheres. As mulheres deveriam ser apenas bonitas, meigas e subtis. Como é que um misógino vai sentir-se viril se não tiver quem valide a sua virilidade? A virilidade das mulheres é profunda e duradoura porque foi conquistada a ferros. (Segunda pausa, agora para irem ao dicionário saber o que quer dizer viril e perceber que as mulheres corajosas não precisam de ter músculos ou muitos pêlos, ainda que possam perfeitamente tê-los, se lhes apetecer). Uma mulher não perde a virilidade porque um homem não a valida. Para se tornar viril, ela teve de resistir a todas as não validações. Como a dos homens depende da validação das mulheres, vivem no terror de a perder, da mesma forma que uma mulher dependente financeiramente fica aterrorizada com a possibilidade do homem não a querer.
Para os misóginos, a mulher que não obedece é louca e desequilibrada, porque o equilíbrio, como todos sabemos, repousa na obediência.
Para um misógino, uma mulher que faz o que quer, e não o que ele quer que ela faça, é sempre maldosa, só pode ser maldosa, e não há outra justificação para o comportamento dela que não seja a maldade.
Como sofro de empatia extrema, tenho alguma pena dos misóginos. Ser machista também não é fácil. Ter de fazer-se valente quando se está triste, ter de proteger em vez de ser protegido, ter de simular que se quer lutar, quando se está vulnerável e se quer ser acarinhado, não poder chorar, quando era o que precisava, ter de ser sempre muito potente, muito dotado, muito forte, quando o sempre é uma ficção impossível de suportar, porque não existe.
Não gostar das mulheres é penoso, é um sofrimento que não compensa. Asseguram-me os feministas, que, segundo dizem, divertem-se imenso.
Geometria.
Ao ler O Senhor Swedenborg e as Investigações Geométricas, lembrei-me de uma frase que o Gonçalo M. Tavares disse, enquanto almoçávamos na Churrasqueira Marechal: “Quando se tratava de reputação, não olhava a amor”. Já não sei de quem falava, mas tenho a certeza que era sobre muita gente.
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