Mudar de vida.
Queremos mudar de vida. Mudar de lugar, de par, de trabalho. Comer melhor, descansar mais, enrijecer o corpo, começar uma obra. Reformar a nossa visão do mundo. Fazer uma revolução pessoal. Sermos nós próprios. Tornarmo-nos naquilo que queremos ser. Ir em busca de uma vida nova.Ultrapassamos as barreiras exteriores, fazemos os preparativos, compramos todos os apetrechos, erguemos a cabeça, enchemos o peito de ar, mas, chegado o momento da mudança, qualquer coisa resiste. Paralisamos. Afinal, não fazemos parte da minoria privilegiada que consegue dar o grande salto. Parece haver uma força superior que nos amarra a uma vida que não queremos ter.
Entre o desejo de mudança e a inércia que nos imobiliza, o que fazer?
Antes de mais, é necessário começar por resistir às injunções vazias de mudança. O “coaching” moderno e os gurus do desenvolvimento pessoal apelam à transformação total, à reprogramação cerebral – “repita três vezes em frente ao espelho: eu sou bonito, eu sou inteligente, eu consigo” – e dão-nos receitas rápidas para mudanças radicais, que funcionam como dietas ioiô: depois de um imenso esforço de três dias, regressamos aos velhos hábitos e sentimo-nos ainda mais miseráveis do que se não tivéssemos feito nada. A lavagem cerebral não só não comporta uma mudança real, como aumentará a angústia existencial.
O apelo ao renascimento é muito sedutor. Apagamos tudo o que fomos e transformamo-nos noutra pessoa. Mas, além de ser ilusório, faz parte de uma ideologia neoliberal que se concretiza na alienação do indivíduo. Em ambientes íntimos ou públicos, todos dizem que temos que mudar. Nas empresas, ouvimos discursos que solicitam personalidades flexíveis, autónomas e que sejam capazes de reinventar-se sem cessar. Flexível para ser lucrativo, adaptado para querer consumir, autónomo para não precisar de proteção laboral. O indivíduo transformado será, assim, um indivíduo suficientemente enfraquecido para incorporar os interesses do outro, aqui, do capital.
Por isso, o segundo passo para a mudança é não querermos mudar. O que procuramos realmente não é tornarmo-nos noutra pessoa mas sobretudo podermos ser nós próprios. Encontrar o nosso eu perdido no meio de tantas apropriações exteriores. O desejo de mudança significa que não somos o que queremos ser mas o que outros querem que nós sejamos. Espinosa disse que a servidão é deixar-se habitar pela exterioridade. Devemos opor-nos a tudo o que possa tirar a nossa existência. “A felicidade consiste na pessoa poder conservar o seu eu.”
A resistência às coações exteriores faz-se por duas vias: a manutenção de espaços de respiração e o exercício. É necessário reaprender o silêncio, a velha tática que nos permite ver os desejos intrínsecos, identificar as ameaças da alienação e reconhecer as nossas fontes de alegria. Seja através da meditação, da música ou das artes plásticas, para nos ouvirmos teremos de nos abster de falar.
Reconquistar-se e melhorar-se também exige disciplina. No livro Tens de Mudar de Vida, Peter Sloterdijk escreve que o “o ser humano não está tão possuído por demónios como por automatismos. Não são os maus espíritos que o colocam à prova. São as rotinas e a inércia que o agarram ao chão e o deformam.” Para nos desacorrentarmos da vida que não queremos ter, devemos substituir os maus hábitos – os arquitectos invisíveis das nossas vidas - por bons, e repeti-los com rigorosa regularidade, até que se tornem automáticos e, finalmente, profundamente reformadores.
Desenganem-se os que pensam que este é um apelo espartano. Só com consistência é possível mudar. Mas que seja através de pequenas metas, fáceis de repetir e sedimentar. Cossery, um adepto da indolência, escrevia apenas uma linha por semana. Com essa regularidade, publicou oito belos livros. A criação de uma nova vida não é, pois, um acto heróico, mas a execução constante, mesmo que ínfima, do exercício que nos torna naquilo que queremos ser.
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