Pensamento crítico ou teoria da conspiração?
Ironia da história: é na era da informação omnipresente e da ciência dos dados que nascem cada vez mais teorias da conspiração. Diz a definição que são discursos críticos sobre o desenvolvimento da História e pressupõem a existência de um grupo de pessoas poderosas que governam o mundo. No dicionário Oxford, é “a crença de que um acontecimento foi planeado secretamente por organizações poderosas”, “com intenção de conseguir ou de esconder algo”, acrescenta o Priberam. Se alongarmos o argumento, não podemos encontrar algumas destas ideias em exercícios intelectuais? Não há grupos de pessoas com poder suficiente para decidir sobre vida de muitas outras? Questionar os métodos e resultados científicos não faz parte da evolução da própria ciência? Não há muito para além dos discursos oficiais, que, independentemente dos motivos, se pretendem secretos? O que distingue uma teoria da conspiração de um pensamento crítico? Para tentarmos responder a estas questões, façamos um exercício filosófico, imaginando o que diriam Platão, Nietzsche e Descartes sobre o tema.
Platão
As teorias da conspiração são ideias falsas às quais estamos acorrentados, como os prisioneiros da caverna. Lembram-se do que escrevi n´ A República? Num diálogo entre Sócrates e Glauco, descrevo uma caverna onde se encontram prisioneiros acorrentados, que apenas conseguem ver sombras. Estando lá desde a infância, e nunca tendo saído, acreditam que as sombras que vêm são a única realidade existente. Quando um é libertado, vê a luz do sol e objetos reais pela primeira vez, doem-lhe os olhos e supõe que são menos verdadeiros do que as sombras. Se decidisse regressar à caverna, e contar o que tinha visto aos outros prisioneiros, diriam que teria desenvolvido problemas de visão, e, se tentasse arrastá-los para fora da caverna, instigando-os a ver os objetos reais, poderiam sentir-se ameaçados e até matá-lo. Trazendo esta alegoria para o presente, podemos dizer que as teorias da conspiração são as sombras, e os prisioneiros são os que acreditam nelas. Os conspiradores não só asseguram que as sombras são reais, como afirmam que quem tem mais conhecimento está com a visão distorcida. Vivem no mundo sensível, o das aparências, baseado em suposições e opiniões rasas. A liberdade deles corresponderia à saída da caverna, onde está o mundo inteligível, o das ideias. Os defensores das teorias da conspiração não pretendem saber mais, já têm todas as respostas, e perseguem quem os questiona. Mas, prisioneiros da caverna sensível, onde reina a ignorância, podem libertar-se. Leiam livros, estudem o tema, levem as vossas ideias a debate. A vossa condição não é fixa. É uma questão de se porem a caminho. O do conhecimento.
Nietzsche
As maiores teorias da conspiração foram criadas por filósofos. Platão e outros pensadores criaram “outros mundos”, que dão a ilusão de haver locais onde existe a perfeição, e inventaram “conceitos-múmia, ficções que enfraquecem os indivíduos e são uma renúncia à vida aqui e agora. Esses mundos, que só existem nas ideias, são inventados por quem não é capaz de viver no mundo real, o dos sentidos. E, para entrarmos neles, temos de definhar neste. É, portanto, por causa de uma deceção que nos distanciamos da vida e nos projetamos no erro. Devemos questionar esses fantasmas, que são as teorias da conspiração, e reavaliar constantemente as nossas crenças e valores, para promovermos um pensamento criativo, autêntico e livre. Procuremos novas formas de pensar e viver, que reflitam uma genuína e profunda afirmação da vida e da experiência humana. Abracemos o caos e a incerteza da existência, sem recorrer a respostas fáceis e conclusivas que os conspiradores nos querem dar. Sejamos autónomos, capazes de criar os nossos próprios valores, e afirmemos a nossa vontade de poder. O nosso objetivo deve ser a autoafirmação perante quaisquer ideias que nos queiram impor, sejam elas provenientes de forças poderosas desconhecidas, ou de conspiradores enraivecidos. Leiam O Único e a Sua Propriedade, do Max Stirner, porque foi de lá que tirei esta ideia. Como ele diz, vivemos rodeados de “fantasmas”, ideias e sistemas que não têm uma base concreta ou real. São conceitos abstratos que exercem controlo sobre o indivíduo e afastam-no do seu verdadeiro potencial. As teorias da conspiração, como qualquer ideologia ou religião, servem quem as cria, não o nosso interesse. Quem as desenvolveu, encontrou uma forma de convencer os outros que o seu objetivo era altruísta, e visava o bem comum. Mas, se os conspiradores chegassem ao poder, seríamos autónomos e livres? Deixo-vos uma frase que se aplica perfeitamente a este tema: “Todos têm uma ideia muito nobre para embelezar a causa de si próprios”.
Descartes
Não posso deixar de parte a hipótese de sermos marionetas nas mãos de poderes malignos. Mas, mesmo que a verdade não esteja ao meu alcance, uma coisa, apesar de tudo, depende de mim, acreditar naquilo que me tentam impor. Nada me impede de duvidar, sempre. Se essas entidades poderosas existirem, por mais astutas que sejam, não são capazes de me impor nada. Mesmo que abusem de mim, não podem impedir-me de negar-lhes a minha crença e, ao fazê-lo, da experiência interior do meu próprio pensamento. Esta é a ideia que apresentei nas minhas Meditações Metafísicas. Se quando sonhamos não sabemos que estamos a sonhar, como saber se tudo o que sentimos não passa de um sonho também? Se já acreditamos ser verdade algo que afinal não era, como garantimos que o que pensamos agora não é igualmente falso? Pelo prazer de pensar e de levar a cabo o meu raciocínio, coloquei a possibilidade da existência de um “Génio Maligno” que tenta impor-me, constantemente, ideias falsas. A partir dessa ideia, terei de estar sempre alerta, de duvidar de tudo em que acredito. Algumas das crenças que possuo, podem ter sido obra do esforço desse génio maligno que me tentou enganar. Sei que este pensamento se parece com uma teoria da conspiração, mas, ao contrário do conspirador, que acredita cegamente e não consegue impedir-se de aderir àquilo que sabe poder ser falso, na alegria da experiência cartesiana da dúvida, recuso-me a aderir àquilo que sei que é verdade, pelo simples prazer de questionar. E, “mesmo que tudo seja apenas ficção, pelo menos penso. E ao pensar, existo como algo que pensa.” Penso, logo existo.
Findo o exercício, diferenciemos. Se as teorias da conspiração promovem certezas e são alimentadas pela vontade de concluir, o pensamento filosófico encoraja a curiosidade aventureira sobre o funcionamento do mundo. Os filósofos projetam para o futuro vários cenários possíveis e disponibilizam o pensamento à sua própria contestação. Os conspiracionistas detém crenças enraizadas, voltadas para a simplificação do passado, e têm finalidades totalizantes. Se uma teoria filosófica se propagar, é possível que saiamos mais emancipados. Se as aspirações de uma teoria da conspiração se concretizassem, provavelmente todos pensaríamos o mesmo. No mínimo, aborrecido.
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