Fabiana Lopes Coelho Fabiana Lopes Coelho

Afinidades.

”Aprendi desde cedo a viver nas margens, num certo isolamento, salvo pelo quietismo do rio e a convulsão dos livros, os únicos lugares onde eu me sentia bem.

Já nessa altura era um spinozista antes de o ser, queria encontrar toda a alegria possível.

Depois do 25 de abril a Escola de Cinema fechou durante dois anos, portanto nem cheguei a entrar. Meti-me na política. Militei em pelo menos três partidos de extrema-esquerda. Partidos pequenos, mas asfixiantes, e fui sendo expulso de todos. Uma dessas expulsões foi “por desvio teoricista”, porque organizei umas leituras coletivas de livros que não eram bem vistos… de outro fui expulso porque dormi enrolado na bandeira do partido [risos]. Era tudo tão absurdo, e eu que não sou capaz de me entregar absolutamente a nada como era exigido nesses tempos… nunca consigo aderir totalmente a nada, não consigo evitar uma certa distância que me tornava uma pessoa “estranha” nesses ambientes fechados. Mas o que podia fazer se havia em mim essa fissura, essa incapacidade de adesão absoluta ao que quer que seja?

E fui-me afastando da Sociologia, porque é uma ciência que só pode funcionar a partir de grandes abstrações, visões totalizadoras da vida e dos problemas. Parte do princípio de que podemos compreender a totalidade do mundo a partir de uma teoria ou de uma série de conceito e sempre achei essa atitude uma grande arrogância. Acredito mais no poder inventivo da poesia.

A grande ilusão dos modernistas assentava na ideia de que através dessas abstrações poderiam chegar ao Real. Mas “o Real” é aquilo que excede tudo. Por mais muros que criemos historicamente, reais ou teóricos, tudo rumoreja por todo o lado, tudo está em permanente convulsividade.

Já dizia o Lacan, “o Real é o que estraga a festa”.

Porque o Capitalismo, como qualquer outra teoria, não explica tudo ou projeta uma lucidez ilusória.

Claro que, em teoria, tudo aquilo faz sentido, mas a prática da vida humana desmente sempre a perfeição das teorias, porque são sempre uma abstração.

Capitalismo como teoria parece-me manifestamente insuficiente.

Cada ato urgente que exige uma resposta e essa resposta não está pré-determinada por uma posição “imutável” e absolutamente certificada, tem que resultar de uma decisão livre. (…) uma falsa coerência, que nos obrigaria a ser coniventes com tudo seja e esteja decidido pela “direita” e a “esquerda”, consoante os gostos. Ora, esse princípio de coerência é a base da indignidade em política.

Sempre procurei pensar a an-arkhé — que não se pode confundir com o que se tornou o Anarquismo no qual não me revejo.

Ora quem está mergulhado na vida até ao pescoço sabe que nenhuma teoria ou abstração servem.

Não existe “sujeito”, existe sim uma trama de ligações inscritas sobre a carne e as formas, que são coisas muito mais fortes do que “o sujeito”. Tudo que existe é um conjunto de relações formadas por expansões do corpo.

O Real está a ser afetado por cada gesto ínfimo, por cada livro obscuro que é publicado, por cada palavra.

Vivemos num mundo movido pela força do acidente, da transformação, da metamorfose, o que nos indica que qualquer estrutura que vise controlar ou estabilizar o Real está condenada ao fracasso.

A ideia que o Platão desenvolve no livro O Banquete é fundamental: é a ideia de um mundo regido por Eros, deus das ligações, que se opõe ao caos e à desligação.

No princípio não era o verbo, eram as imagens.

Na visão comum considera-se que técnica é uma invenção humana, que por isso mesmo está ao nosso alcance, que a dominamos e podemos aplicar com segurança. Mas existe um elemento de exterioridade que excede as formas históricas da “técnica, as nossas teorias, laboratórios e máquinas. Como sabiam os antigos, pense-se em Aristóteles, a técnica é uma mimesis da Techné da natureza, da “Physis”, que conseguimos replicar, extrair, pôr a funcionar no mundo histórico.  Veja-se o caso do espelho. O espelhar está já em qualquer superfície líquida, nas pedras polidas, mas fixá-lo num “espelho” é algo de novo, acrescenta algo que não existia, mas que é exatamente o espelho.

E fomos aprendendo a duras penas como a ilusão de controlar a História e controlar a Natureza está a levar-nos à beira da extinção. Precisa-se da ilusão para se poder viver, mas viver na ilusão do controlo deixa-nos impreparados para o pior. Na verdade, temos de partir dos problemas, um a um a um, e responder da maneira mais lúcida e potente possível.

A Técnica é um conjunto de ligações.

A Técnica é um conjunto de ligações, por isso o que fazem as técnicas matemáticas e digitais é explorar e intensificar a nossa potência de ligação. Por detrás da intensificação da nossa relação com o telemóvel ou com as redes de computadores está a potência e a complexidade das nossas ligações uns com os outros. Dada a infinidade das máquinas que se espalharam pelo mundo, autores como Marx e Heidegger tentaram reduzir a “técnica” à “tecnologia”, acreditando que assim poderiam circunscrever a sua força. Mas vivemos no delírio de grandiosidade de achar que as máquinas que extraímos da Natureza representam o nosso domínio sobre ela. Cada máquina que extraímos acrescenta, modifica o mundo, mas no Ocidente estivemos sempre presos a uma visão instrumental que diz que as máquinas são meros utensílios. Mas veja-se como o automóvel, como a técnica nos escapa sempre: é fácil aprender a conduzir um carro, a “dominar” a máquina, nas não somos capazes de resolver os problemas de trânsito, os acidentes, a poluição… não da mesma maneira. A ideia de instrumento que punha tudo à nossa disposição deixou de funcionar.

Daí a importância de não confundir “máquinas” com “técnica”.

Acredito que precisamos de aprender a amar as máquinas, desenvolver com elas uma “filia”, uma amizade.

Mas o que é o Apocalipse se não uma forma de impedir os outros de pensar, pois o medo não permite o diálogo, deixa-nos desmunidos perante as mudanças do Real.

Um óbice evidente é fazer a IA uma questão terminante, exigindo ser-se a favor ou ser contra. A IA e as suas máquinas relacionam-se com muitas outras, como as ligadas à energia ou à computação, bem como dispositivos históricos ligados ao trabalho, à guerra, à invenção, às artes, etc. É da criação de combinações mais potentes que tudo depende e é preciso intervir sobre as suas ligações, lutando contra as mais perigosas, as mais indignas, em favor de outras formas mais livres, justas ou belas.

A obra de arte é sempre uma forma de abertura, porque tudo o que acontece tem a potência de transformar, de alterar o Real, seja em grande ou pequena escala. Se toda a coisa adicionada ao mundo tem um poder de alteração a arte é, acima de tudo, um trabalho que tem a alteração como substância necessária. Daí a necessidade libertá-la dos moralismos e da submissão a programas, pois é única forma de ação onde tudo pode ser possível.

Para mim é importante não ser abstrato, nem essencialista, nem totalizante.

Como disse Giordano Bruno, “pensar é especular com imagens”.

Para mim a constelação parece-me melhor porque respeita a empiricidade selvagem do real, consegue articular conceitos, objetos e imagens a partir da “imagem” que constitui, e que é sempre nova e única. A constelação é aquela que mais está atenta a algo que é essencial que são as ligações.”

José Bragança de Miranda, Entrevista de Joana Emídio Marques, no Observador.

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Mudar de vida.

Queremos mudar de vida. Mudar de lugar, de par, de trabalho. Comer melhor, descansar mais, enrijecer o corpo, começar uma obra. Reformar a nossa visão do mundo. Fazer uma revolução pessoal. Sermos nós próprios. Tornarmo-nos naquilo que queremos ser. Ir em busca de uma vida nova.Ultrapassamos as barreiras exteriores, fazemos os preparativos, compramos todos os apetrechos, erguemos a cabeça, enchemos o peito de ar, mas, chegado o momento da mudança, qualquer coisa resiste. Paralisamos. Afinal, não fazemos parte da minoria privilegiada que consegue dar o grande salto. Parece haver uma força superior que nos amarra a uma vida que não queremos ter.

Entre o desejo de mudança e a inércia que nos imobiliza, o que fazer?

Antes de mais, é necessário começar por resistir às injunções vazias de mudança. O “coaching” moderno e os gurus do desenvolvimento pessoal apelam à transformação total, à reprogramação cerebral – “repita três vezes em frente ao espelho: eu sou bonito, eu sou inteligente, eu consigo” – e dão-nos receitas rápidas para mudanças radicais, que funcionam como dietas ioiô: depois de um imenso esforço de três dias, regressamos aos velhos hábitos e sentimo-nos ainda mais miseráveis do que se não tivéssemos feito nada. A lavagem cerebral não só não comporta uma mudança real, como aumentará a angústia existencial.

O apelo ao renascimento é muito sedutor. Apagamos tudo o que fomos e transformamo-nos noutra pessoa. Mas, além de ser ilusório, faz parte de uma ideologia neoliberal que se concretiza na alienação do indivíduo. Em ambientes íntimos ou públicos, todos dizem que temos que mudar. Nas empresas, ouvimos discursos que solicitam personalidades flexíveis, autónomas e que sejam capazes de reinventar-se sem cessar. Flexível para ser lucrativo, adaptado para querer consumir, autónomo para não precisar de proteção laboral. O indivíduo transformado será, assim, um indivíduo suficientemente enfraquecido para incorporar os interesses do outro, aqui, do capital.

Por isso, o segundo passo para a mudança é não querermos mudar. O que procuramos realmente não é tornarmo-nos noutra pessoa mas sobretudo podermos ser nós próprios. Encontrar o nosso eu perdido no meio de tantas apropriações exteriores. O desejo de mudança significa que não somos o que queremos ser mas o que outros querem que nós sejamos. Espinosa disse que a servidão é deixar-se habitar pela exterioridade. Devemos opor-nos a tudo o que possa tirar a nossa existência. “A felicidade consiste na pessoa poder conservar o seu eu.”

A resistência às coações exteriores faz-se por duas vias: a manutenção de espaços de respiração e o exercício. É necessário reaprender o silêncio, a velha tática que nos permite ver os desejos intrínsecos, identificar as ameaças da alienação e reconhecer as nossas fontes de alegria. Seja através da meditação, da música ou das artes plásticas, para nos ouvirmos teremos de nos abster de falar.

Reconquistar-se e melhorar-se também exige disciplina. No livro Tens de Mudar de Vida, Peter Sloterdijk escreve que o “o ser humano não está tão possuído por demónios como por automatismos. Não são os maus espíritos que o colocam à prova. São as rotinas e a inércia que o agarram ao chão e o deformam.” Para nos desacorrentarmos da vida que não queremos ter, devemos substituir os maus hábitos – os arquitectos invisíveis das nossas vidas - por bons, e repeti-los com rigorosa regularidade, até que se tornem automáticos e, finalmente, profundamente reformadores.

Desenganem-se os que pensam que este é um apelo espartano. Só com consistência é possível mudar. Mas que seja através de pequenas metas, fáceis de repetir e sedimentar. Cossery, um adepto da indolência, escrevia apenas uma linha por semana. Com essa regularidade, publicou oito belos livros. A criação de uma nova vida não é, pois, um acto heróico, mas a execução constante, mesmo que ínfima, do exercício que nos torna naquilo que queremos ser.

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Doente? Vamos ao filósofo.

Nunca se tratou e se falou tanto de saúde. Fazemos visitas regulares aos hospitais e às clínicas, exames médicos consecutivos, medicamentos, consultas, dietas, "fitness" e todas as outras tentativas de conquistarmos bem-estar. Mas parece que não é suficiente. Continuamos débeis, sem energia, doentes. Para dar uma resposta a esta contradição, procurei em livros e revistas de filósofos, que me responderam assim.

Hipócrates

Se queres curar-te, tens de mudar os hábitos de vida. Qualquer pessoa, independentemente do nível socio-económico, pode ser saudável. A primeira regra no caminho da saúde é usar os alimentos como medicamentos. Alimentar-se bem, portanto. A segunda é caminhar. Pouco. A ideia não é desgastar o corpo mas oxigená-lo. O descanso também é importante. E a terceira é a moderação. Todo o excesso se opõe à natureza. “É perigoso evacuar, alimentar-se, aquecer-se, ou, de qualquer modo, perturbar o organismo, excessiva ou subitamente.” Por último, tem em consideração a estação do ano, a idade, e o local onde vives, para adequares o estilo de vida ao teu meio. Já sabes que os mais novos têm maior necessidade de desgaste energético do que os mais velhos e que, por exemplo, há doenças que aparecem no Inverno e outras no Verão. Resumindo: para seres saudável, come pouco, sobretudo vegetais, caminha meia hora por dia e não faças nem consumas nada em excesso.

Séneca

Até podes fazer tudo o que o Hipócrates diz mas não é isso que vai determinar a tua saúde porque a alma é tudo. Se ter um corpo pleno de saúde é o teu propósito de vida, não te surpreendas se ficares doente. Porque não depende de ti. Todos ficarão doentes alguma vez na vida. A única coisa que depende de ti é a forma como lidas com a doença. E para lidar com ela é preciso domar a mente como se doma um cavalo bravo. O mais importante é “não ceder à propensão de nada fazer para a qual nos inclinamos quando ficamos doentes”. No início, debilitado, tens de agir antes de teres vontade. Tens de forçar os hábitos, até que eles se tornem automáticos, novamente. Continua a alimentar-te correctamente, a arranjares-te, bebe um bocado de vinho, vai dar um passeio. Faz a maioria das coisas que fazias antes de estar doente, apesar de agora exigirem mais esforço. Quando a doença passar, sairás mais forte. O importante é não te deixares vencer. Muitas vezes somos enganados na farmácia porque nos dão medicamentos em vez de princípios. A saúde está na nossa cabeça. Se tiveres medo da doença, ela dominar-te-á.

Descartes

Concordo totalmente com o Hipócrates: comer bem, caminhar e seguir a moderação da natureza. Inclusivamente, foi nas minhas caminhadas matinais que tive a ideia do “Discurso do Método”. Mas o medicamento que mais cura é a alegria. Escreve uma lista do que te alegra e dá prioridade a isso. O conjunto dos teus órgãos funciona como um relógio: se retirares uma peça, tudo se transforma. E, infelizmente, a tua alma e o teu corpo estão conectados. As paixões da alma, o desejo, o amor, o ódio, a alegria e a tristeza são pensamentos que provocam diferentes estados no corpo. Assim, tem cuidado com as prescrições e confia mais na experiência que tens do teu corpo. Segue os teus instintos. “A causa mais comum da febre é a tristeza”, escrevi um dia à minha amiga Élisabeth de Bohéme, a quem dediquei os meus “Princípios de Filosofia”. Se sofreres de um tal estado, desvia a atenção para as coisas simples: olha para as flores, caminha na praia, conversa com amigos, o que te alegrar. A doença é uma coisa um bocado estranha: ela está, ao mesmo tempo, no nosso órgão infectado e no nosso cérebro.

Nietzsche

Esquece tudo o que foi dito até aqui. Todas as propostas éticas ou teóricas não são mais do que a domesticação dos sintomas ou dos afectos. Há sempre quem queira restringir a afirmação da tua vontade, reprimindo os teus instintos, em nome de um tal altruísmo. Supostamente, os médicos pretendem ajudar-te mas o que fazem é dar-te ordens sobre como deves tratar o teu corpo e a tua alma, afirmando a vontade deles, não a tua. Eu passei a vida a sofrer de difteria, sífilis, enxaquecas permanentes e, nos últimos anos, de demência. Portanto, eu pergunto-te: por que é que tens medo da doença? É dela que nasce a “grande saúde”, aquela em que tu usaste a doença para fazer qualquer coisa que não farias se nunca tivesses ficado doente. Se eu não tivesse sofrido tanto, nunca teria escrito nada. A doença obrigou a isolar-me e a tornar-me lúcido sobre as pessoas. Claro que as tuas doenças far-te-ão sofrer, mas não há que ter medo! As sensações de prazer e de desprazer resultam da forma como interpretamos as excitações exteriores. Eu utilizo remédios e já experimentei todas as dietas. Acima de tudo, depende do meu estado de espírito. Mas se insistires para te dar os meus “segredos”, eu digo-te que é caminhar e dançar. Longe de mim propor-te uma terapêutica universal! Eu inclino-me sobretudo para uma “saúde triunfante”, mas também é necessário aceitar o carácter trágico da existência.

Georges Canguilhem

O Nietzsche tem alguma razão no que diz. A atitude médico-paciente “repousa sempre numa relação de obediência, refugiada num tecnicismo que não é mais do que uma forma de dominação. Hoje, já não é o paternalismo benfeitor do médico-pai que está em causa, mas a técnica, armada de benfeitores incontestáveis, que ela prevê, reforçando esta figura do biopoder do Foucault.” Ora, as relações de cuidado não podem ser de obediência. Para te curares, e tendo em conta as tuas novas condições, deves criar as tuas novas regras de vida. Quando se perde o luxo biológico, tal como quando se perde o luxo económico, é preciso modificar os hábitos. Há que se adaptar à nova condição. A ideia não é seguir as normas que os médicos ou quem trata de nós nos impõem, mas reconquistar uma parte da nossa capacidade de normatividade. Por isso é que eu considero que os melhores remédios são as técnicas: quando a mão já não é suficientemente forte para apanhar os objectos, inventamos a pinça. Assim, as doenças são ocasiões para inventar ferramentas que as superam. É o momento para o desenvolvimento de novas capacidades, fazendo deste constrangimento imposto uma ocasião para um desenvolvimento florescente.

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Pendura-me na parede de um museu.

O problema de toda a gente andar obcecada com o melhoramento do corpo é o mesmo de toda a gente andar afogada em enormes quantidades de imagens publicitárias e instagrâmicas. A coação da hipervisibilidade reside no facto de só o valor de exposição contar. Não há nada para além do corpo. Não há narrativa.

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Se o remédio é abrandar, por que continuamos a correr?

Um espectro atravessa os novos tempos, o da exaustão. Vivemos a violência do excesso: de informações, estímulos e impulsos. Nunca paramos. Estamos sempre a produzir, a render, a comunicar. Corremos como gazelas mesmo sentados. E se em algum momento surgir um tempo vazio, corremos a ocupá-lo. A violência da sociedade actual já não é só disciplinar, também é neuronal.

Passamos de criar loucos e criminosos para conceber esgotados, frustrados e deprimidos. As doenças paradigmáticas da nossa época, como o transtorno por défice de atenção e hiperactividade, o transtorno de personalidade "borderline" ou o síndroma de "burnout" não têm origem num vírus, na alteridade. O inimigo fundiu-se em nós, está no próprio sistema. A doença nasce no corpo sobreaquecido, e alastra-se como metástases, minando silenciosamente as nossas almas. E a pergunta impõe-se. Se a exaustão nasce do excesso, e dá origem a uma autoagressão apática e progressiva, por que é que não diminuímos, retiramos, cessámos? Se o remédio é abrandar, porque continuamos a correr?

Primeiro, estamos sobreocupados porque há uma pressão constante para um maior rendimento. O objectivo da sociedade actual é claro: o ser humano é uma máquina que tem que maximizar a sua produção e funcionar sem falhas e interrupções. É por este motivo que há cada vez mais medicamentos para aumentar as capacidades físicas e intelectuais, que nos permitam continuar mesmo quando já ultrapassamos os nossos limites. Ou a razão do aumento do consumo de drogas para entretenimento. Esgotados, deixamos de ter a capacidade de nos divertir, enfraquecemos, separamo-nos.

Depois porque, na era moderna, sem crenças, sem convicções e isolados, sem nada que nos garanta duração ou estabilidade, precisamos a todo o custo encontrar um sentido de vida. A ocupação constante é uma tentativa de esquecimento da nossa finitude. Alienamo-nos voluntariamente para vestir esta vida nua. Mas vesti-la desta forma não só não nos tira o frio, como está a tornar-nos angustiados, frustrados, deprimidos.

O ser demasiado ocupado é um ser automatizado. A hiperactividade não é mais do que um sintoma de esgotamento nervoso que resulta numa hiperpassividade. Quando estamos exaustos, deixamos de conseguir resistir aos estímulos. Ficamos diminuídos das nossas capacidades. Não tomamos decisões livres. Fazemos tudo por impulso, não porque escolhemos fazer. A máquina não consegue deter-se. Ou, como diria Nietzsche, “tal como uma pedra, o homem activo rebola ao sabor da estupidez mecânica.” E o frenesim apenas acelera o que já existe. Não gera nada de novo. Só a contemplação do descanso permite o pensamento, a criação.

Talvez seja por isto que Pascal dizia que “toda a infelicidade dos homens vem de uma só coisa, que é não saberem ficar quietos dentro de um quarto” ou que o último filme de Godard termine com Roxy, um cão que passeia, brinca e dorme sestas no sofá, num Adeus à linguagem. O não-fazer, o descanso profundo, o tempo sem tempo, proporciona-nos uma serenidade especial. Descansados, rejuvenescemos, gostamos mais dos outros. As coisas começam a reluzir, a bruxulear. Neste mundo frenético, de uma imensa necessidade de paz, urge, pois, parar, interromper, descansar.

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Agora, nem eu vendo nem tu compras maçãs a um preço justo.

Houve um tempo em que as maçãs nasciam das árvores sem intervenção humana. Os ciclos naturais das águas, das terras, dos ventos e do sol reuniam tudo o que era preciso para que as maçãs brotassem saudáveis. Depois, começou-se a cultivar macieiras. O agricultor tirava sementes de uma maçã e punha-as na terra. Para continuar a ter cada vez mais maçãs, começou a tratar as árvores. Primeiro, podava-as e fazia outras coisas que as ajudavam a crescer. Mas, como esse procedimento não garantia que ele tivesse todas as maçãs que queria, começou a comprar uns produtos feitos em laboratório, que se põem nas macieiras para as maçãs crescerem muito rápido. Também experimentou uns pós para matar ervas e os bichos que costumavam comer algumas maçãs. Mas o agricultor queria ainda mais maçãs, maiores e mais baratas, por isso, em vez de usar as sementes da macieira, passou a comprá-las a empresas que as fabricam em laboratórios, que são modificadas geneticamente para crescerem rapidamente, sem a natureza a atrapalhar. São todas iguais e grandes. Há quem diga que essas coisas e sementes que põem na terra e nas macieiras contaminam o ambiente, provocam cancro e outras doenças muito complicadas, mas não é por isso que estou a contar esta história.

Nesse tempo, antes dos pós e das sementes criadas em laboratório, apanhava as maçãs das árvores, ou comprava-as ao agricultor, e comia-as. Ou não pagava nada por elas, eram uma espécie de oferta da natureza, ou pagava, vamos apenas exemplificar, três cêntimos por cada maçã, ao agricultor. Ele argumentava que eu lhe deveria pagar porque tinha tido o trabalho de as cultivar, proteger e apanhar. Primeiro, não concordei. Afinal, eu tinha-as de graça, podia apanhá-las, e ele agora dizia que as árvores eram dele. Mas depois entramos em consenso. Ele apanhava-me as maçãs e eu pescava, ainda que sempre me tenha recusado a domesticar os peixes, como ele fez com as macieiras. “Se não tens maçãs para colher, podes sempre colher laranjas ou pêras e, em cada época, vendes o que a natureza te oferece sem esforço. Não percebo porque queres vender só maçãs.” Começou-me a falar de um tal efeito de escala, mas ignorei-o. Era um bocado ganancioso, por isso devia ter qualquer coisa a ver com isso. Eu sempre preferi dormir a sesta a dominar o mundo, por isso, especializei-me nela e na arte de pescar no mar.

Um dia, cheguei a casa do agricultor, chamei por ele, e não obtive reposta. À porta, tinha uma folha A4, com uma morada, que dizia: “Para comprar as minhas maçãs, dirija-se ao meu distribuidor”. Que chatice, agora tinha que andar não sei quantos quilómetros para comprar as maçãs. Tanto as sardinhas como as maçãs iam ficar uma porcaria com o calor. Mas como só havia aquelas macieiras na terra (o agricultor apropriou-se de todas), lá tive que ir ao distribuidor. Finalmente, chego ao destino e, para meu espanto, vejo milhares de maçãs de todas as cores e feitios, cartazes gigantes e uns anúncios a piscar cores ácidas que diziam que aquelas maçãs eram as melhores do mundo. Tudo aquilo para vender umas maçãs? Quando tive de pagar sete cêntimos por cada maçã, percebi. Três cêntimos eram para o agricultor e quatro cêntimos para construir o parque de diversões das maçãs.

Mas nisso enganei-me. Quando encontrei o agricultor, uma vez, na praia, disse-me que agora só ganha um cêntimo por cada maçã, e que se não vendesse àquele preço, o distribuidor não lhas comprava. “Porque não voltas a vendê-las tu?”, perguntei-lhe. “Sabes, agora ninguém compra maçãs ao agricultor. É sempre ao distribuidor. Ele faz muita publicidade e convence as pessoas que as maçãs que ele vende são as melhores e as mais baratas. Não teria clientes. Ao menos, assim, garanto algum. E, sabes, tenho de as deixar lá e só recebo o dinheiro quando forem vendidas, o que significa que ele recebe o dinheiro das maçãs primeiro do que eu, e aplica-o no banco até mas pagar. Além de ganhar dinheiro com a venda das minhas maçãs, também ganha juros do meu dinheiro. E diz que aquilo tudo é para pagar o trabalho de as pôr nas prateleiras e de as promover. Que tristeza. Agora, nem eu posso vender nem tu podes comprar maçãs a um preço justo”. “É verdade”, respondi. “Queres que te ensine a pescar?”

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Amor: sexo e metafísica.

Toda a gente já sentiu aquela chicotada no cérebro. No momento em que olhamos para ele ou para ela, o queixo cai-nos, os olhos saltam-nos das órbitas, a realidade suspende-se. Começamos a ver tudo de forma diferente. Sideramos. Eis o amor, a experiência natural mais pungente, hipnótica e extasiante do ser humano.

Inflamados, começamos a imaginar o outro e apaixonamo-nos pelo que é perfeito nele. Não é preciso que ele seja perfeito em tudo, mas tem que encarnar alguma forma de perfeição. A nossa personagem tem que ser superior aos outros, ultrapassar o resto da humanidade em alguma coisa. Apaixonamo-nos pela nossa imaginação. Por isso é que no "Banquete", de Platão, Sócrates diz que o “erro surge por se considerar que o amor é aquilo que se ama e não aquilo que ama”. Não cometer o erro significará, então, dizermos que o amor tem mais a ver com a forma como amamos do que com a pessoa que amamos. Ou, como diria Barthes, “é o amor que o sujeito ama, não o objecto”. Mas, se não é a pessoa que amamos mas o nosso estado de enamoramento, porque razão desejo aquela pessoa e não outra? Amamos quem queríamos ser, quem nos é útil ou quem nos satisfaz.

É por este motivo que há quem considere que toda esta história é uma grande facécia, que o amor é uma invenção bizarra que tem por objectivo sentimentalizar o instinto sexual. Ou seja, tal como os outros animais, o que procuramos é sempre sexo. E esse instinto cega-nos até conseguirmos satisfazer-nos . Mas, mesmo que o amor não seja mais do que uma ilusão, os sentimentos que desperta são reais. E, se ninguém deixa de dormir, comer e até se suicida por deixar de ter sexo, a que se deve a imensidão do desgosto amoroso?

Quando termina um amor, não é a pessoa que se perde. É o sentido da nossa existência. Claro que podíamos encontrá-lo de várias formas. Na contemplação, passando os dias na natureza, a reflectir, a aprofundar o pensamento. Na acção, prosseguindo uma causa, como a igualdade, a justiça ou a luta contra o racismo. Ou na diversão, na boémia, na transgressão. Mas não há nenhum que empilhe todos os sentidos da vida como a paixão. Ela é uma ideia, uma causa, que nos impele a contemplar, agir, cooperar, arder e andar à deriva. Absorve todos os sentidos, a vida toda. Deve ser por isso que o amor é o objectivo último de quase todas as aspirações humanas. E será também por isso que dá origem aos maiores sofrimentos. A violência da paixão é tal que serve de consolo para a maior dor da consciência humana: deixamos até de nos lembrar que um dia vamos morrer. Achamos que vamos ser felizes para sempre. Ou, como diria Cesare Pavese, nos seus diários, "Ninguém se mata pelo amor de uma mulher. Matamo-nos porque um amor, não importa qual, nos revela a nós mesmos na nossa nudez, na nossa miséria, no nosso estado inerme, no nosso nada”.

E o que fazemos, então, quando a paixão acaba, seja porque deixamos de a sentir, seja porque o outro se foi embora'? Como evitamos o sofrimento do amor?

Há quem preconize uma entrega desenfreada às relações sexuais para evitar os perigos de uma paixão única, e há quem apregoe a domesticação das pulsões carnais para nos defendermos das atrocidades do amor. Mas, seja para não corrermos o risco de substituirmos uma dependência emocional por uma dependência sexual, seja para não deixarmos de viver a experiência mais singular da vida humana, alcancemos a autonomia individual, a auto-suficiência emocional. Embriaguemo-nos também com arte, com ideias ou com festas. Viver ao contrário da natureza é remar contra a maré, mas procuremos a felicidade não só na busca do prazer também na lucidez, na independência relativamente a falsas necessidades e a preconceitos que criam frustrações. Em união ou em celibato, não expectemos a satisfação de todas as nossas necessidades no outro. Há pessoas que vivem acompanhadas e sentem uma profunda solidão e há celibatários que nunca se sentem sozinhos. Desprezemos os discursos falaciosos das servidões no amor. É que no início, durante e no fim, vestidos ou despidos, o inferno não é o outro, somos sempre nós.

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15 anos de música que faz tremer.

Portugal é um país exótico no panorama musical ocidental. Em Inglaterra, nos E.U.A, em França ou na Alemanha há blues, há rock n´roll, punk, pós-punk, industrial, dance rock ou garage; em Portugal há fado, pimba e a música do não aquece nem arrefece.

Como os Parkinsons são daquelas bandas que aquecem muito, em 2000 foram para Inglaterra acelerar os ingleses, que lhes deram aquilo que Portugal não dá aos grandes músicos desobedientes: um grupo de fãs fiel e grandes destaques na comunicação social.

Como o bom aluno que não percebe nada da matéria, mas que copia tudo, a imprensa portuguesa imitou os destaques da imprensa internacional e pôs os Parkinsons em relevo nas páginas dos jornais. Depois, como os hábitos são muito difíceis de mudar, voltaram a encher os artigos com a música do assim-assim, que vende bilhetes para festivais de música de gente muito bem comportada, que só come o que as grandes empresas lhes põem na mesa. É o mundo do continua assim, a comprar-me tudo, que eu ainda tenho muitas roupas, "gadgets", e outras coisas muito "trendy" para te vender, e essa gente do rock porco, sujo e mau, que só gosta da música pela música, não me compra nada e só destabiliza. Enquanto isso, a banda de Victor Torpedo, um dos mais brilhantes músicos portugueses, Afonso Pinto, Pedro Chau e de nove bateristas diferentes (agora, Paula Nozzari), tocavam em grandes festivais europeus e enchiam salas no Japão.

O punk e os Parkinsons são daquelas raridades em Portugal em que as pessoas se reúnem à volta da música porque adoram música e não para serem ricos ou famosos. Claro que se pudessem viver da música, seria perfeito. Pagariam as contas a fazer o que mais amam. Mas não é por isso que fazem música, porque se fosse, não o fariam, já que, na maioria das vezes, perdem mais dinheiro do que aquele que ganham. Em Portugal, só quem está associado a grandes empresas pode ganhar dinheiro com a sua arte e ser dignificado pela comunicação social. E isto tem consequências muito profundas na cultura de um país. Uma cultura que não é livre é uma cultura que mutila o desenvolvimento humano e impede a sua emancipação. Como músico em Portugal, não posso criar o que quero, dizer aquilo que penso das grandes corporações, nem de tudo o que está à sua volta, porque são elas que me editam os meus discos, escrevem sobre os meus concertos, expõem os meus quadros ou publicam os meus livros.

Neste mundo pronto-a-usar, o punk é uma lufada de ar fresco, uma inocência desobediente perdida, onde os amigos pegam em instrumentos, puxam uns acordes e fazem qualquer coisa de novo. O punk diverte, o punk faz abanar as ancas, o punk emancipa. E é isso que os Parkinsons sempre fizerem com o seu público. No sábado passado, em Coimbra, num Salão Brazil a abarrotar de gente, completamente esgotado, mostraram aquilo que são, uma grande banda que incendeia o público e põe toda a gente a vibrar. Cantaram os clássicos, como a "Bad Girl", a "Angel in The Dark" e a "Primitive", cuja letra deu origem ao documentário "A Long Way to Nowhere", sobre a sua história, a ser exibido agora em Portugal; e as mais recentes, dos álbuns da Garagem , uma editora a não perder de vista. Há 15 anos a tocar música que faz tremer. É disto que Portugal precisa.

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A mulher e a sua propriedade.

Querida Catarina,

O problema começa quando te apaixonas. A partir desse dia, colocas a tua vida em suspenso e dedicas-te completamente ao outro. Deixas de ir ao jantar semanal com os amigos para estar com ele. Deixas de fazer desporto para estar com ele. A hora diária que passavas a ler ou a ver o teu programa preferido é substituída por uma hora à espera de uma mensagem ou de um telefonema, ou a acompanhá-lo nas actividades dele. Relegas a escola ou o trabalho para segundo plano e passas a agir de acordo com aquilo que pensas ser os gostos da outra pessoa. Acreditas que esse sacrifício vale a pena porque crês que o êxtase que sentes quando estás com ela é aquilo que sempre procuraste.

Entretanto, decidem viver juntos. Ao esforço emocional, acresce o esforço físico. Compras as matérias-primas para as refeições e para a limpeza da casa. Cozinhas, limpas, passas a ferro, serves as refeições e lavas a loiça. O teu novo trabalho não tem horário, não tem direitos de doença ou despedimento e muito menos remuneração. Fá-lo gratuitamente todos os dias na esperança de seres recompensada com amor e compaixão. É neste momento que começas a ficar exausta e, como verificas que o relacionamento está a piorar, esforças-te ainda mais, tentado agradar de todas as formas. Pode ser também neste momento que decides abandonar o teu trabalho para te dedicares a tempo inteiro ao companheiro, à casa e aos filhos. Se já tinhas perdido a independência emocional, agora também perdes a independência financeira. Tal como os escravos, trocas trabalho por um tecto e comida, tens de estar disposta sexualmente e ouvir frases como “A única coisa que sabes fazer é pedir dinheiro.” Ou “Mas porque é que estás cansada se estiveste todo o dia em casa?”

Pode chegar o dia em que pensas que isto aconteceu porque não és suficientemente bonita ou inteligente, que tens uma tendência natural para a depressão, para o histerismo ou mesmo para a loucura. Mas não acredites nisso. Esta história não é sobre beleza ou inteligência mas sobre autonomia, sobre o sacrifício que fazemos para recebermos do companheiro aquilo que precisamos de dar a nós próprias.

Para que isto não aconteça contigo, emancipa-te. Mantém a tua independência. Não importa se fazes “telemarketing”, se serves às mesas ou és empresária. Orgulha-te da capacidade que tens de sustentar-te. Não faças o trabalho doméstico que compete ao teu companheiro. Se ele não o fizer, não te apoquentes. Trata da tua comida e da tua roupa e segue em frente. Não te isoles dos teus amigos ou da tua família. Para não dependeres emocionalmente da outra pessoa, partilha o teu amor com outras pessoas, animais, natureza, música, livros, desporto ou outras paixões. Não controles nem deixes que te controlem. Prioriza sempre a tua dignidade, porque ela é, no fim de contas, a coisa mais importante que possuis.

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Oito motivos para entrar na estalagem dos Oito Odiados.

Tarde livre. A chover. Entrei na sala de cinema a pensar que ia matar três horas com mais um filme do Tarantino. Apesar dos últimos não me terem cativado, é sempre uma escolha segura. Pelo menos, não ia ver cenários de videojogos. Mas não. O que aconteceu foi que viajei numa montanha, durante uma tempestade de neve, e entrei numa estalagem americana que me abrigou. Sentei-me à lareira, peguei numa caneca de café, e conheci oito pessoas surpreendentes.

Isto costuma acontecer-me na literatura: fascinar-me com as personagens e levá-las comigo para a vida, como se de amigos se tratassem. Sempre que tenho um dilema moral, penso no Rodion, do "Crime e Castigo"; quando tinha colegas de turma que decoravam tudo e não percebiam nada, lembrava-me do Euzebiozinho, d´"Os Maias"; quando um amigo fica muito invejoso e tenta de todas as formas ser importante, sorrio a pensar no Ulrich, d´"O Homem Sem Qualidades"; ou, quando conheço alguém neurótico que tenta agradar toda a gente, lembro-me logo do rapaz da bandoleira cor de laranja, do "Rei Pálido".

Mas foi a primeira vez que me aconteceu no cinema. Vim embora com o Major Marquis Warren, um negro nada típico, muito pouco coitadinho (no filme, obriga um branco a fazer-lhe sexo oral — a cena mais violenta da história — quais jorramentos de sangue qual quê), que sofre a discriminação de uma forma tão imponente, que ridiculariza quem o discrimina; com John Ruth, o homem que enforca pessoas mas é sensível (dá boleia a dois desconhecidos, ganha afecto por Daisy, a condenada, e evita a morte de um odiado); com Daisy Domergue, a assassina assustadora que adora o irmão, e por isso destrói a ideia binária de mulher-boazinha ou mulher-serpente.

Aliás, não há qualquer carga erótica na personagem, o que demonstra bem a inteligência de Tarantino ao delinear mulheres a sério e não bonecas de plástico cinematográficas, como é habitual no cinema, especialmente no americano; com Chris Mannix, o imbecil aparvalhado que de burro não tem nada; com Bob, o mexicano (para além das dicotomias norte-sul, negro-branco, homem-mulher, a questão rácica mexicana também é abordada), que me pôs a rir às gargalhadas com a cena da entrada na estalagem, directo ao cobertor e à lareira, por causa do frio; com Oswaldo Mobray, o homem que tem muitas peneiras mas escrúpulos nenhuns; com Joe Gage, o discreto que faz as maiores atrocidades, sempre com um ar muito inocente; e com o general Sanford Smithers, o velho racista reaccionário que matou meio batalhão de negros na guerra civil mas que é muito sensível e inofensivo quando fala do filho.

Os "Oito Odiados" dão para rir, dão para pensar no estado dos E.U.A., no estado da política e da sociedade em geral, dissertar acerca do que é a justiça e a injustiça, apreciar a complexidade das pessoas, nas suas várias camadas, e entrar num mundo onde não há apenas bons ou maus, bonitos ou feios, pobres ou ricos. Não há nada disso no filme do Tarantino. Apenas personagens densas, boa música e uma belíssima fotografia. Apenas inteligência.

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A arte da resistência.

Há uma pergunta que assola o debate contemporâneo sobre a participação política: porque é que, apesar de sermos livres para nos insurgirmos contra este sistema político, que é totalmente injusto e contrário aos nossos interesses, continuamos calados? Há duas respostas clássicas a esta pergunta. E outra, que é a minha.

Há quem pense que os meios de comunicação social, a igreja, a escola e outros aparelhos ideológicos do Estado exercem uma influência tal que acabamos por acreditar nos valores que justificam a nossa própria subserviência. Esta teoria afirma, por exemplo, que nós acreditamos que estamos desempregados porque não somos suficientemente empreendedores. Outros sustentam que estamos calados porque acreditamos que esta ordem social é natural e que, independentemente do que façamos, os poderosos continuarão a mandar e os pequenos a obedecer.

Estas duas teses têm em comum o facto de afirmarem que estamos convencidos. Ou convencidos que este é o melhor sistema, ou que não há alternativa. Ou seja, estamos enclausurados numa teia ideológica que nos leva a ler o mundo de uma forma contrária aos nossos próprios interesses. Mas isso é condescendência da elite intelectual e económica. Pensar que estamos calados porque não compreendemos o que nos está a acontecer é típico de pensadores de gabinete. Ou de quem precisa justificar os privilégios da sua posição.

A nossa aparente subordinação é uma estratégia de sobrevivência, um teatro que nos dispomos encenar para nos protegermos das represálias a que estamos diariamente sujeitos. Isto pode acontecer no trabalho, para não sermos despedidos, em casa, para evitarmos uma agressão doméstica, ou na escola, para o professor não nos dar má nota.

Nós apenas podemos falar, insultar e revoltarmo-nos em espaços protegidos, onde quem exerce o poder sobre nós não nos oiça. Ou, em espaços vigiados, utilizando uma linguagem disfarçada, rumores, ameaças ou acções anónimas, entre outras formas de resistência. É a nossa guerra de guerrilha. E se acreditássemos que uns nasceram para mandar e outros para obedecer, não criaríamos poemas transgressores, canções de intervenção, ditos populares, peças de teatro satíricas ou utopias que ecoam um mundo imaginário onde ninguém pode exercer poder sistemático sobre ninguém.

É precisamente este discurso oculto, como lhe chama James Scott, o cimento para a acção política que, com determinadas condições, será trazido para o espaço público e que dá origem a reais transformações sociais. Não é de estranhar, portanto, que a maior preocupação dos governos autoritários seja vigiar todos os nossos passos, para não conseguirmos criar espaços próprios que permitam o seu desenvolvimento.

Até ao dia em que alguém tiver a coragem, ou a loucura, de dizer publicamente o que dizemos todos os dias clandestinamente, continuemos, pois, a alimentar as nossas conversas, em casa ou no café, as nossas associações, os nossos livros, as nossas músicas, os nossos eventos de iniciativa popular ou outros espaços nos quais somos livres de dizer o que realmente pensamos. Reforcemos os nossos espaços, que são agora de liberdade oculta, mas também a génese dos nossos espaços futuros de liberdade pública. E nesse dia, que alguém igual a nós se arriscar a trazer à luz o discurso reprimido, será a festa da libertação. Pode ser apenas um dia em que não tenhamos que fingir uma atitude de deferência. Mas também pode ser o primeiro dia da revolução.

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Sem razão.

Em O Banquete, de Platão, Sócrates diz que o “erro surge por se considerar que o amor é aquilo que se ama e não aquilo que ama”.

Não cometer o erro significará, então, dizermos que o amor tem mais a ver com a forma como amamos do que com a pessoa que amamos.

Deve ser por isso que Barthes, nos seus Fragmentos, diz que “é o amor que o sujeito ama, não o objecto”.

Se não é a pessoa que amamos mas o nosso estado de enamoramento, porque razão desejo aquela pessoa e não outra?

Max Stirner responderia que “O amor do egoísta brota do seu interesse pessoal, corre para o leito do interesse pessoal e desagua de novo no interesse pessoal.” Em O Único e a sua propriedade.

Amamos quem queríamos ser, quem nos é útil ou quem nos satisfaz.

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Bem-vindos à hipsterlândia.

Olá, eu sou um hipster. Passo o dia a pensar na roupa vintage que vou vestir, quais os óculos que vou comprar e se vou deixar crescer a barba mais dois ou três centímetros. Adoro marcas de roupa alternativas, gadgets alternativos, revistas alternativas e músicas muitíssimo alternativas. Gosto de citar coisas muito cultas ou diferentes dos outros mas o meu objectivo primordial é inebriar a cidade com glamour. Vou a sítios que chamam tapas ao pão e ao chouriço, acho um máximo comer sandes de pernil, como os pobres, mas em ambientes mais requintados, como o festival dos sons primaveris, e como gelados trendy, feitos com bolachas industriais oreo, na gelataria “artesanal” da baixa. Tenho a noção que o meu sentido estético é apuradíssimo. Nunca criei arte mas tenho uma sensibilidade artística fora do normal. No fundo, tenho uma cultura geral superior aos seres humanos comuns. Sou uma pessoa diferente. Só ainda não percebi que a cidade está cheiinha de pessoas exactamente iguais a mim.

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Desassossego

Acabo de receber esta mensagem de um amigo: "Vives desassossegada e escreves para desassossegar". Gosto muito dele mas não tem razão nenhuma. Primeiro, o meu único desassossego é não ter mais tempo para escrever. De resto, acho tudo muito divertido. Segundo, só escrevo para me divertir ainda mais. Desculpem não ter nenhum objectivo altruísta nisto. Mas, só para não dizerem que sou má rapariga, peguem lá uma musiquinha para a tarde de domingo. 

Roberto Carlos, Eu sou terrível.

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Capa de revista.

Se se paga a uma modelo para ser fotografada, porque não se paga à criança fotografada na guerra?

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Lembranças.

Quando era pequena e vivia no meio das jóias e dos empregados, pedia muito a deus que me levasse dali para um sítio calmo, onde pudesse ler, ou para outro, com pessoas sem poder, amigos e solidariedade. Deixei de acreditar em deus mas todos os meus desejos foram realizados. Se nos conseguirmos lembrar do que pedimos em crianças, iremos perceber que quase tudo se concretizou. O mal da vida começa aí, no momento em que deixamos de ser capazes de nos lembrar do que sempre desejamos.

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Sucesso

O sucesso público cresce na razão directa da capacidade do indivíduo se produzir - na aparência, na eloquência, na inteligência, na simpatia. É um exercício dramático tão mais rentável quanto mais tempo durar a peça.

No fechamento das cortinas, o indivíduo sucedido é um indivíduo esgotado, incapaz de criar nucleoplasmas. Isto ocorre porque, após algum tempo, a diferença entre o indivíduo produzido e o espontâneo apresenta um valor insuficiente para sustentar a corrente eléctrica.

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Hierarquia vs Transversalidade

Se há coisa indigna neste mundo é achar que se pode falar em nome dos outros. Os médicos acham que podem falar pelos doentes, os que estudaram mais pelos que estudaram menos, os homens pelas mulheres, os professores pelos alunos, ou os empresários pelos trabalhadores. O que interessa é que cada um fale de si, ou enquanto membro do grupo a que pertence, e dos problemas políticos ou financeiros que o afectam. Para que isto faça algum sentido, num hospital, por exemplo, terá que haver o grupo dos médicos, o dos enfermeiros, os trabalhadores da limpeza, todos os que hajam, e o grupo dos doentes. E não uma administração, ou o grupo privilegiado, que fala em nome de todos.

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"Pas une image juste, juste une image".

Quando somos crianças, desconhecemos tudo. Superamos o medo do novo, uma a uma coisa. Tenho medo da distância do tampo do banco até ao chão. Depois de saltar a primeira vez, percebo que a distância não é assim tão grande. Perco o medo. A última superação infantil é a do medo dos pais.
Mal superamos os nossos medos reais, arranjamos logo coisas fictícias que nos amedrontem. Agora, o que tememos é a consciência, as crenças, as ideias, as representações. Ou seja, arranjamos novos pais para temer. E construímo-los perfeitos, para não termos a possibilidade de os superar. Sentindo-nos impotentes perante os nossos medos ficcionados, entramos no vazio. Para sairmos dele, para voltarmos a sermos livres, temos que destruir essas ideias, essas crenças, essas representações. As maiores crueldades do ser humano foi sempre justificada por uma delas.


Isto fez-me lembrar a frase do Godard que diz "Pas une image juste, juste une image" (não uma imagem justa, só uma imagem), porque a justiça, que é uma ideia, foi inventada por alguém. E esse alguém não fui eu, pelo que não é a minha justiça mas a justiça de quem a criou. Se a justiça portuguesa tivesse sido inventada pelos pobres, só haveria ricos nas prisões. Como foi inventada pelas elites, são os pobres que lá estão.


É por isso que eu não adoro nada, especialmente ideias. Quanto menos adoramos, e quanto mais experienciamos, ou apenas apreciamos, menos ficções de perfeições temos para alcançar. E menos vazios tenho para preencher.

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