Insultos para todos.*
“22 de Janeiro de 1985
Agradeço a sua carta em que me informa da retirada de um dos meus livros da biblioteca de Nijmegen. E de que acusam o livro de discriminação por causa dos negros, dos homossexuais e das mulheres. E de que é sádico por causa do sadismo.
Receio, todavia, que o que está a ser discriminado seja o humor e a verdade.
Se escrevo coisas terríveis sobre os negros, os homossexuais e as mulheres é porque os que conheci eram assim. Há muitos “maus” – maus cães, má censura; até há “maus” homens brancos. Só que quando escrevemos sobre “maus” homens brancos, estes não se queixam. E será preciso dizer que existem “bons” negros, “bons” homossexuais, e “boas” mulheres?”
Charles Bukowski, Sobre a escrita, Alfaguara.
*Digo eu, que seleciono a opção “outro” nos formulários sobre género. Não é com censura que se acaba com o racismo, com a homofobia ou a misoginia. Ide ler A Violência e o Escárnio do Cossery e A Dominação e a Arte da Resistência do Scott para verem como se faz.
A loucura do dia.
“Será a minha existência melhor do que as dos demais? É possível. Tenho um tecto, muitos não têm. Não tenho lepra, não sou cego, vejo o mundo, alegria extraordinária. Vejo este dia fora do qual nada existe. Quem me pode roubar isso? E eclipsando-se o dia, eclipsar-me-ei com ele – pensamento, certeza que me transporta.
Amei alguns seres, perdi-os. Enloqueci quando sofri o golpe, porque é um inferno. Mas a minha loucura permaneceu sem testemunho, o meu desvario não veio a lume, apenas a minha intimidade era louca. Por vezes, ficava furioso. Diziam-me: Por que estás tão calmo? Ora, eu estava a ferver dos pés à cabeça. À noite, calcorreava as ruas, gritava; durante o dia, trabalhava tranquilamente.
(…)
Com razão, sobreveio-me a memória e vi que mesmo nos piores dias, quando me cria perfeita e inteiramente infeliz, era, no entanto, e quase sempre, extremamente feliz. Esta descoberta não foi agradável. Deu-me que pensar. Parecia-me que estava a perder muita coisa. Interroguei-me: não havia eu estado triste, não tinha eu sentido a minha vida a rachar-se? Sim, tal acontecera; porém, a cada minuto, quando me levantava e corria as ruas, quando permanecia imóvel no canto de um quarto, a frescura da noite, a estabilidade do sol levavam-me a respirar e a repousar sobre a alegria.”
Maurice Blanchot, A loucura do dia, Snob.
Todos temos medo de Virginia Woolf.
Na brochura que me ofereceram, ontem, à entrada do São João, Paulo Faria escreve:
“«Quem Tem Medo de Virginia Woolf» fez-me perceber que, quer gostasse quer não, eu era figurante daquele drama. Talvez tenha percebido, graças ao texto de Edward Albee, que não era feliz. (…) Tudo aquilo me era sinistramente familiar.”
Eu senti o oposto, uma comoção pelo privilégio de viver com a bondade, a delicadeza, a alegria e a solidariedade.
(Num deleite de quase três horas, interpretado admiravelmente por Anabela Moreira, Joana Africano, João Reis e Daniel Silva).
Linhas de fuga.
Ontem, passei o fim do dia a ler o Mil Planaltos do Deleuze e do Guattari, e cheguei à conclusão que sou uma máquina desejante, um corpo sem órgãos, mais rizomática do que arborescente, às vezes sofro de paranoia, mas apresento ainda mais sintomas de esquizofrenia. No fundo, sou quase nómada.
Mil Planaltos.
“A esquizofrenia, para Deleuze é um método: «Formação de uma desorganização progressiva e criativa»”. (Rafael Godinho, na abertura).
“Freud tentou abordar os fenómenos de multidão do ponto de vista do inconsciente, mas não viu bem, ele não via que o próprio inconsciente era antes de mais uma multidão. Foi míope e surdo; tomou multidões por uma pessoa. Os esquizos, pelo contrário, têm o olho vivo e a orelha fina”.
“Dizem-nos: apesar de tudo, o esquizofrénico tem um pai e uma mãe? Lamentamos dizer que não, não tem enquanto tal. Só tem um deserto e tribos que aí moram, um corpo pleno e multiplicidades que a ele se agarram.”
“sobre o corpo paranoico, onde os órgãos não param de ser atacados por influências”
“o corpo sem órgãos é o que resta quando tudo foi retirado. E o que se retira é precisamente o fantasma, o conjunto de significâncias e de subjectivações. A psicanálise faz o contrário: traduz tudo em fantasmas, amoeda tudo em fantasmas, guarda o fantasma, e para cúmulo, falha o real.”
“Os drogados, os masoquistas, os esquizofrénicos, os apaixonados, todos os corpos sem órgãos prestam homenagem a Espinosa. O CsO é o campo de imanência do desejo, o plano de consistência próprio ao desejo (…)”
(“quando muito drogar-se sem droga, embebedar-se com água pura, como na experimentação de Henry Miller?”)
“Sempre que o desejo é traído, amaldiçoado, arrancado ao seu plano de imanência, há um padre no caso (…)”
“A figura mais recente do padre é o psicanalista.”
“o nomadismo como movimento (mesmo no sítio, mexa-se, não pare de se mexer, viajem imóvel, dessubjectivação)”
“Eis pois o que será preciso fazer: instalar-se num estrato, experimentar as oportunidades que nos oferece, procurar um sítio favorável, movimentos de desterritorialização eventuais, linha de fuga possíveis, experimentá-las, garantir aqui e ali conjugações de fluxos, experimentar segmento por segmento continuuns de intensidades, ter sempre um bocadinho de uma terra nova.”
“O génio é aquele que sabe fazer de toda a gente um devir (talvez Ulisses, a ambição falhada de Joyce, meio conseguida por Pound).”
“Quanto às linhas de fuga, não consistem nunca em fugir do mundo, mas antes a fazê-lo fugir, como se fura um cano, e não há sistema social que não fuja de todos os extremos, mesmo se os segmentos não cessam de endurecer para colmatar as linhas de fuga. Nada de imaginário, nem simbólico, numa linha de fuga. Nada de mais activo do que uma linha de fuga”
“Às relações que compõem um indivíduo, que o decompõem ou o modificam, correspondem intensidades que o afectam, aumentando ou diminuindo a sua potência de agir, vindo das partes exteriores ou das suas próprias partes. Os afectos são devires. Espinosa questiona: o que pode um corpo? Chamar-se-á latitude de um corpo os afectos de que é capaz segundo tal grau de potência, ou antes segundo os limites desse grau.”
“As criações são como linhas abstractas mutantes que se libertam da tarefa de representar um mundo, precisamente porque agenciam um novo tipo de realidade que a história só pode voltar a apreender ou colocar nos sistemas pontuais.”
Deleuze & Guattari, em Mil Planaltos, Assírio & Alvim.
Correntes eléctricas.
20 anos depois de os ver pela primeira vez, 10 anos desde a última, sou capaz de ir aos anos do Salgado ouvir Feeding The Machine, um disco que animou o Porto cinzento de 2004.
Instinto Maternal II.
O ChatGPT não escreve nada de novo ou interessante, mas gosto sempre dos comentários que faz aos meus textos. Sobre o último:
O texto apresentado, conciso e direto, faz uma provocação que desestabiliza uma das narrativas mais arraigadas nas culturas humanas: o instinto maternal como característica inata e universal das mulheres. Num tom quase confessional, a voz do eu lírico, articula uma desconstrução dessa ideia, através de uma honestidade desarmante, enquanto aborda a recusa em adotar o papel maternal esperado socialmente. Esse gesto não é apenas individual, mas cultural e filosófico, sendo uma resistência ao essencialismo que reduz as mulheres a um papel biológico predefinido.
A Dimensão Filosófica: A Desconstrução do Instinto Maternal
Filósofos como Elisabeth Badinter, mencionada no texto, propuseram que o "instinto maternal" é menos uma inevitabilidade biológica e mais um mito construído culturalmente, para reforçar estruturas patriarcais. Em O Amor Incerto e O Conflito, Badinter argumenta que o amor materno é uma construção histórica que varia conforme o tempo e a sociedade, desmontando a noção de que as mulheres são naturalmente predispostas a cuidar de crianças.
O texto ecoa essa visão ao problematizar a ausência de prazer no ato de brincar ou cuidar de crianças, opondo-se à romantização da maternidade, e evidenciando uma vivência que não se alinha com os ideais dominantes de feminilidade. Assim, o "tédio" e a "exasperação" sentidas pela narradora não são tanto expressões de apatia, mas atos de resistência contra uma norma que insiste em naturalizar uma vocação específica para as mulheres.
O Instinto "Canídeo" e o Redimensionamento dos Afetos
A comparação entre crianças e cães é especialmente interessante, pois desvia a atenção para outra forma de instinto e de afeto. Ao dizer que julga compreender o que outros sentem pelas crianças por experienciar algo semelhante por cães, o texto reconfigura as categorias de cuidado e empatia. Trata-se de um jogo irónico: se não há instinto maternal, poderia haver um "instinto canídeo"? Essa inversão subverte o peso da narrativa biológica, deslocando os vínculos emocionais para algo mais espontâneo e específico, não guiado pelas normas sociais ou genéticas.
O Tom Pessoal e a Universalidade da Questão
Embora o texto pareça ancorado na vivência pessoal, a sua sinceridade transcende a confissão individual, transformando-se num comentário universal sobre os modelos de afeto que nos são impostos. O estilo seco e direto contrasta com a densidade da reflexão implícita, convidando o leitor a reavaliar as suas próprias suposições sobre a maternidade e a empatia. Ao recusar "sentir algo especial" por crianças, o texto não nega o valor da infância, mas questiona o caráter obrigatório de um tipo específico de vínculo emocional.
Reflexão Final
O texto pode ser lido como uma crítica tanto ao determinismo biológico quanto à moralidade normativa que espera de todas as mulheres a mesma relação com a maternidade. Sob a perspectiva de Badinter, a protagonista deste relato está na linha da frente de um "conflito" contemporâneo: o de libertar a subjetividade feminina dos modelos pré-estabelecidos. Em última instância, é um manifesto breve, mas contundente, contra a uniformização das emoções humanas.
Instinto maternal.
Nunca quis ter filhos. Nunca tive instinto maternal. Em nenhum momento considerei cuidar de crianças uma atividade prazerosa. Sinto tédio ou exasperação quando me pedem para brincar. Respeito-as. Gostam de mim. Mas não sinto nada de especial por elas. Só compreendo o que dizem porque julgo experimentar algo semelhante por cães. É provável que tenha instinto canídeo.
Mais sobre o conceito filosófico do mito do instinto maternal em O amor Incerto, e O conflito, de Elisabeth Badinter.
Parrhesia.
Arlette Farge
“O acolhimento e a simplicidade de Michel Foucault eram tais que se estabeleceu rapidamente entre nós uma compreensão mútua – até mesmo cumplicidade.
Foucault analisava os seus arquivos históricos como se fossem poemas; falava da "vibração física" que sentia em relação a eles.
Fiquei encantada com a sensibilidade de Foucault, e sentia uma grande libertação sempre que estávamos juntos. Ser emulativo, sensível, poeticamente envolvido com os documentos, não era um defeito, mas uma das suas forças motrizes para novas reflexões.
Também recordo alguns momentos extremamente engraçados. (…) O riso que era uma linguagem completa. Tal como os seus momentos de raiva, o riso expressava a sua forma de viver o mundo, mas também de domesticar a sua maneira de pensar, que sabia ser tão nova, até mesmo iconoclasta.
Sem exagero, gostaria de dizer que este encontro foi inesquecível para mim.”
André Glucksman
“Recordo Michel Foucault no cimo de uma escadaria em Vincennes (…) A sua coragem física era inegável, mas, mais fundamentalmente, era a coragem da verdade e da solidão que se afirmava nele.
Foucault foi um pensador anti-totalitário (…) A sua acção e o seu pensamento não se guiava pelos grandes ideais – o Bem, a Justiça – que podem servir de álibi para cometer os piores horrores. Embora fosse visto como anti-humanista, ambos concebemos este credo: o intelectual não se empenha em nome do humano, mas contra a desumanidade e as suas práticas intoleráveis hic et nunc.”
Pascal Bruckner
“Sem qualquer ordem específica, as minhas recordações dele combinam três elementos: uma recepção muito calorosa, uma inteligência inigualável, sempre alerta, e um humor lascivo que espantava os jovens dândis que éramos.
As suas piadas eram lendárias. A Jean Baudrillard, que tinha publicado Esquecer Foucault em 1977, respondeu: “O problema é não conseguir lembrar-me quem é Baudrillard”.
Tradução selvagem de Foucault, Le Courage d´être soi, Philosophie magazine, Hors-Série.
“A maldade bebe ela mesma a maior parte do seu veneno."*
“O sábio basta-se a si mesmo”. Amigo Lucílio, muita gente interpreta incorrectamente esta máxima, afastando o sábio do mundo que o rodeia e reduzindo-o aos limites do seu corpo. Por conseguinte, é imprescindível distinguir bem o que significa, e qual o alcance desta frase: o sábio basta-se a si mesmo para viver uma vida feliz, não simplesmente para viver, na medida em que para viver carece de muita coisa, mas para ter uma vida feliz basta-lhe possuir um espírito são, elevado, indiferente à fortuna.”
“O sábio também pode estremecer, sofrer, perder a cor, pois tudo isto são sensações fisicamente naturais. Onde está então a desgraça, quando é que estes sintomas se tornam num mal verdadeiro? É apenas quando causam abatimento da alma, quando levam o homem a confessar a sua servidão, quando o forçam a arrepender-se de si mesmo.”
“O sábio goza de tranquilidade. Porquê? Porque o sábio não depende de factores externos, não está à espera dos favores da fortuna ou de outros homens. A sua felicidade está dentro dele; fazê-la vir de fora seria expulsá-la da alma, que é onde, de facto, a felicidade nasce. Pode uma vez por outra surgir qualquer ocorrência que lembre ao sábio a sua condição de mortal, mas ocorrências deste tipo são de somenos importância.”
“O homem feliz, insisto, é aquele que nenhuma circunstância inferioriza.”
Cartas a Lucílio, Lúcio Aneu Séneca, Fundação Calouste Gulbenkian.
*Esta frase é de Átalo, não de Séneca, como se encontra mal referenciada na internet. Séneca cita-o no livro. Não os lêem, e depois dá nisto.
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