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Irritações.

Eles ficam irritados com o que eu escrevo. Ficam mais irritados com os meus textos do que com qualquer outra coisa, e creio que é por causa da maneira como eu escrevo - não o conteúdo, ou a tese. Dizem que eu não obedeço às regras habituais da retórica, de gramática, de demonstração, e de argumentação; mas, é claro, se eles simplesmente não estivessem interessados, não se irritariam.

Derrida, in Gramatologia.

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Hierarquia vs Transversalidade

Se há coisa indigna neste mundo é achar que se pode falar em nome dos outros. Os médicos acham que podem falar pelos doentes, os que estudaram mais pelos que estudaram menos, os homens pelas mulheres, os professores pelos alunos, ou os empresários pelos trabalhadores. O que interessa é que cada um fale de si, ou enquanto membro do grupo a que pertence, e dos problemas políticos ou financeiros que o afectam. Para que isto faça algum sentido, num hospital, por exemplo, terá que haver o grupo dos médicos, o dos enfermeiros, os trabalhadores da limpeza, todos os que hajam, e o grupo dos doentes. E não uma administração, ou o grupo privilegiado, que fala em nome de todos.

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"Pas une image juste, juste une image".

Quando somos crianças, desconhecemos tudo. Superamos o medo do novo, uma a uma coisa. Tenho medo da distância do tampo do banco até ao chão. Depois de saltar a primeira vez, percebo que a distância não é assim tão grande. Perco o medo. A última superação infantil é a do medo dos pais.
Mal superamos os nossos medos reais, arranjamos logo coisas fictícias que nos amedrontem. Agora, o que tememos é a consciência, as crenças, as ideias, as representações. Ou seja, arranjamos novos pais para temer. E construímo-los perfeitos, para não termos a possibilidade de os superar. Sentindo-nos impotentes perante os nossos medos ficcionados, entramos no vazio. Para sairmos dele, para voltarmos a sermos livres, temos que destruir essas ideias, essas crenças, essas representações. As maiores crueldades do ser humano foi sempre justificada por uma delas.


Isto fez-me lembrar a frase do Godard que diz "Pas une image juste, juste une image" (não uma imagem justa, só uma imagem), porque a justiça, que é uma ideia, foi inventada por alguém. E esse alguém não fui eu, pelo que não é a minha justiça mas a justiça de quem a criou. Se a justiça portuguesa tivesse sido inventada pelos pobres, só haveria ricos nas prisões. Como foi inventada pelas elites, são os pobres que lá estão.


É por isso que eu não adoro nada, especialmente ideias. Quanto menos adoramos, e quanto mais experienciamos, ou apenas apreciamos, menos ficções de perfeições temos para alcançar. E menos vazios tenho para preencher.

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Iluminismo, verdades e religiões.

Adoro quando alguém discorda de mim e começa a dizer que tenho que informar-me melhor sobre o assunto, e que não posso centrar-me na minha opinião particular. É o clássico “Só não pensas como eu porque não sabes nada. Se soubesses, concordavas.” Para essas pessoas, tenho uma resposta: para mim, não há verdades. Há opiniões. E a opinião que dou é sempre a minha, pelo que dizer que não devo centrar-me “na minha opinião particular” é estranho. Até porque a opinião do outro é a dele, apesar de ele achar que é uma verdade universal. E ainda é pior quando vêm com a teoria que a opinião deles é mais válida do que a minha porque “há livros que dizem isso”, “há estudos científicos que provam isso”, e mais não sei quantas formas de dizer que há qualquer autoridade que se sobrepõe à minha opinião. É que nem deus, nem a ciência, nem a experiência. O que eu digo vale tanto como o que o papa diz, que é nada. Ninguém diz verdades, todos dizem apenas a sua opinião. Eu questiono tudo. Que questionem tudo o que eu digo então.

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Biografia.

Ontem, passei a noite a ler os diários do Kafka. Queixa-se da necessidade de manter o trabalho no escritório para “ganhar o pão” e da falta de tempo para escrever. Vive em exaustão por manter uma vida dupla, a de agente na companhia de seguros e a de escritor. Pergunta-se constantemente pelas vantagens e desvantagens do celibato e do casamento e de que forma isso influenciaria a sua escrita. Há quem diga, pelas suas cartas, que era torturado pelo desejo sexual. Fala do pai, da relação sinuosa que tinha com ele, e das censuras que lhe fazia por não “se preocupar com a fábrica” da família. Sonha com o momento em que se livraria do escritório e poderia finalmente dedicar-se a escrever. “Não consigo prever uma mudança mais grandiosa do que esta, já de si tão terrivelmente improvável.” Deita-se cedo para escrever de manhã e vai já exausto para o trabalho. Nos dias em que não escreve, sente que o trabalho corre melhor, mas nada daquilo lhe faz sentido. Não lhe doía o corpo mas a alma, digo eu. Tem momentos em que pensa : “não teria a capacidade de aproveitar todo o tempo para a literatura”, para logo afirmar: “todos os dias deveria ser-me apontada ao menos uma linha, como se aponta os telescópios aos cometas”. A mim, também. Ou uma linha por semana, um livro de oito em oito anos, como o Cossery, que conseguiu livrar-se de “tudo isso que desgraçadamente dá felicidade aos imbecis”, e viver, “sempre feliz”, com quase nada.

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Banalidade do mal.

À saída do documentário sobre a Hannah Arendt:

- Não sei como é que ela teve coragem de dizer que aqueles Nazis não eram monstros mentalmente doentes mas apenas burocratas vazios de pensamento que desejavam ascender profissionalmente. Eles sabiam que estavam a matar seres humanos em série!

- Não sei como é que tens coragem de andar com roupas e telemóveis feitos por crianças em condições desumanas só para exibicionismo social. Tu sabes que estás a escravizar seres humanos em série!

- E alguns alemães ainda podiam ter a desculpa de não poderem desertar, com medo da morte. A tua, qual é?

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At home she's a tourist.

No Porto, há cada vez menos casas para portuenses. Todas as casas estão a ser restauradas de forma suficientemente burguesa para que nenhum portuense as consiga comprar ou arrendar. E o argumento é que o turismo traz dinheiro, desenvolve o comércio, e melhorará a vida dos portuenses. É simples: pões os portuenses a viver fora do Porto, porque não têm dinheiro para as casas turísticas; pões os portuenses a andar de Yellow Bus, porque os passes da STCP (aka andar de metro e autocarro para ir para o trabalho) estão cada vez mais caros; pões os portuenses a comer fora do Porto, porque não têm dinheiro para almoçar em restaurantes turísticos; pões os portuenses a tomar café em casa, porque não podem pagar cafés do Starbucks e dos cafés gourmet todos os dias; e depois dizes que estás a fazer isso para o bem deles. Deve ser é para o bem de meia dúzia de empresários, que realmente são portuenses. Só que não é para OS portuenses. E não me venham com o argumento que essas novas empresas trazem emprego, o que é verdade mas esconde um facto importante: os mesmos trabalhadores que estão empregados nessas casas, cafés, comércio e restaurantes turísticos, estariam a trabalhar em casas, cafés, comércio e restaurantes para pessoas que vivem cá. E isto não é uma questão de nacionalismo ou regionalismo. É a recusa da lógica economicista de selecção de pessoas, camuflada de lógica benfeitora. Os portuenses têm direito a viver na cidade deles, sem serem empurrados para as periferias porque não dão a ganhar tanto dinheiro como os turistas, que ganham mais nas terras deles, vai-se lá saber porquê. Se calhar tem alguma coisa a ver com isto.

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A lógica política.

Se a lógica do mercado se funda na suposta racionalidade do ser humano, então, podemos afirmar que o amor é a sua transgressão máxima.

Talvez seja por isso que o capitalismo tenha reduzido o amor ao sexo e a igreja o tenha disciplinado com o casamento.

Não se consegue controlar apaixonados, bêbados e drogados.

Ninguém é tão irracional como quando ama.

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Na crítica, concordo sempre.

Sempre que me fazem uma crítica, apetece-me dizer: "Concordo, concordo. Sigamos em frente". As críticas nunca acrescentam nada. Não têm poder de transformação. Quem critica apenas está a exorcizar algum incómodo. É até um pouco ingénuo achar-se que a crítica pode ser ponto de partida para o novo. É apenas o explanar de uma frustração que pretende disciplinar o outro. "Estás errado. Eu estou certo. Deves comportar-te assim.", que é o mesmo que dizer: " Deves comportar-te da forma que eu considero correcta e não da forma que tu queres". Quando as pessoas não pretendem estabelecer hierarquias de pensamento, apenas dizem "Eu não gosto disso. Não concordo com aquilo". Mas abstêm-se de dizer "Não devias ter feito isso. Estás errado se fizeres aquilo". Quando critico, quero que o outro mude. Acuso-o de não prosseguir os meus interesses.
Outra coisa bem diferente é a opinião. "Eu acho isto. Eu não penso assim. Sobre isso, tenho isto a dizer." Ao contrário da crítica, que encerra, a opinião é fecunda. Tem uma potência transformadora na visualização de novas formas de pensar. Depois, o outro fará o que quiser com ela. Mas já ficou com mais uma. Abriu-se uma nova possibilidade.

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Maus tempos, arte e ficção.

Dizem que a arte e a ficção são necessidades menores em tempos de dificuldade. Mas é quando a realidade se torna insuportável que mais precisamos delas. Não é alheamento do mundo, é construção de um novo. Ao contrário do entretenimento, que é alienação, entorpecimento do pensamento, a arte é florescimento. Enquanto é criada e contemplada, não só liberta a vida da prisão, como revela novas imagens, novas formas de fazer e pensar. Não é irresponsabilidade. É alimentação de espaços de resistência.

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30 dias sem redes sociais.

Fazemos contas a tudo. Fazemos contas à vida e ao dinheiro. Raramente fazemos contas ao tempo. Decidi fazer a contabilidade do meu: de um dia, oito horas gasto-as a dormir, outras oito a trabalhar, e preciso de saber o que faço do resto. Viagens, revisão de livros, aulas, e, como vivo sozinha: tratar do corpo, da roupa, das compras e do jantar. Mas ainda me sobrava tempo. Perguntei-me: "O que fazes depois de acordar, quando queres descomprimir do trabalho e depois de almoçar e jantar?", A resposta estava dada. Gastava-o nas redes sociais.

Além do tempo que nos roubam e do tempo que nos tomam, o resto deixamo-lo escapar. Para mudar o hábito, procurei inspiração e resumi o plano:

1. Fazer a lista dos hábitos a mudar e focar apenas num de cada vez. 2. Compreender o que o desencadeia: antes de o fazer, o que sente? Onde está? Com quem está? O que acabou de fazer? 3. Escolher uma actividade que substitua esse hábito. 4. Repetir a nova actividade até se tornar no novo hábito.

As minhas respostas estavam dadas e as substituições escolhidas. Depois de acordar, iria caminhar. Depois do almoço, ler. Depois do jantar, conversaria com amigos, leria, veria filmes ou meditaria. Quando me sentisse aborrecida ou cansada, os motivos habituais que me levavam a entrar nas redes sociais, sairia do sítio onde estava, durante alguns minutos, para desanuviar. E assim fiz, durante 21 dias, o tempo supostamente necessário para deixar de pensar no hábito antigo e fazer automaticamente o novo. O que efectivamente aconteceu. Nas caminhadas matinais, com o Thoreau debaixo do braço, que isto de alterar hábitos exige motivações filosóficas, surgiu a pergunta: "Se toda a gente despreza as redes sociais de alguma forma, o que nos faz estar tão imersos nelas?".

Imergimos online porque precisamos de evadir-nos. Seja pela televisão, pelo jogo, pelas compras supérfluas, pelas ideias, pelo álcool ou pelas drogas, tentamos por todos os meios superar as nossas limitações humanas e afastar-nos das misérias da vida quotidiana. E precisamos dessa evasão especialmente quando estamos exaustos, porque poderíamos consegui-lo através do desporto, da arte ou da meditação. Mas, como diria Musil, o ser esgotado sente-se atraído pelo que lhe faz mal.

Isolamento

E as redes sociais podem fazer mal por três motivos essenciais: fantasia, vício e solidão. É apenas uma fantasia porque é feito de verdades parciais. Não há silêncios incómodos, copos de vinho derramados, nem desarranjos intestinais. Lá, somos todos muito felizes e anfetaminadamente sociáveis. O problema é que no campo da ficção não é possível criar relações humanas íntimas. Todos sabemos que o determina a profundidade de uma relação é a qualidade e não a quantidade das interacções.

E qualidade implica estar com a pessoa em carne e osso. Substituir a comunicação cara-a-cara pela comunicação apenas online diminui as nossas capacidades de socialização e provoca isolamento. E não é o isolamento dos orgulhosamente não-conformistas, das mentes reflexivas, ou do estóico solitário. É a solidão. E é aqui que as redes sociais se podem tornar viciantes. Quando as utilizamos porque nos sentimos sozinhos, mas estamos cada vez mais isolados por lá estarmos. 

O meu objectivo não é juntar-me à paranoia anti-redes que as acusam de ser uma cominação que ataca a população inocente. É apenas uma tecnologia e, como tal, nós é que escolhemos como a usamos. A questão é que nós podemos escolher aquilo a que prestamos atenção e em que gastamos o tempo. Porque na vida contemporânea é extremamente difícil mantermo-nos conscientes e alerta, não nos afastarmos das fontes humanas de felicidade: contacto com a natureza, liberdade e relações humanas íntimas, e não ficarmos hipnotizados por uma orgia deslumbrante de ilusões.

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Comida pós-moderna.

Comer comida é um dos maiores desafios dos seres humanos do século XXI. Os peixes comem plantas, ovos de peixes, peixes mais pequenos, pequenos crustáceos e restos de alimentos que encontram na água. Os répteis alimentam-se de flores, ovos, algas e outros animais. Os mamíferos selvagens comem ervas, vegetais, cereais, frutos e sementes. Nós precisamos de tirar um mestrado em ciências da nutrição para sabermos o que comer.

Todos os dias, chegam milhares de novos produtos aos supermercados que se esforçam por convencer-nos que são comida, quando realmente são um amontoado de ingredientes altamente processados que a nossa bisavó não faria a mínima ideia do que se trataria. Sulfato de amoníaco e glutamato monossódico são coisas que se comem? Parece que sim. Toda a gente já os trouxe do supermercado, no pão embalado, nos iogurtes gregos ou nas bolachas para bebés. São aditivos químicos usados para intensificar o sabor dos alimentos, conservá-los e dar-lhes cor e aromas apelativos, ou seja, todas as características que um alimento fresco e não tratado tem, naturalmente.

Outra característica fora do padrão clássico alimentar é a obsessão pelas propriedades dos alimentos que supostamente vão-resolver-todos-os-problemas-da-sua-vida. São os fitoesteróis do creme vegetal que vão acabar com o seu colesterol, é a vitamina B6 dos mini-iogurtes que vão protegê-lo contra todas as gripes e constipações e os sumos recheados de antioxidantes que vão mantê-lo jovem para sempre.

Então, aqui vai a pergunta que se torna praticamente inevitável diante das longas prateleiras dos supermercados apinhadas de alimentos processados: Porquê?

Bem, vender legumes frescos que apodrecem numa semana, arroz que ganha bicho e pão tosco que ganha bolor rende muito menos dinheiro. Já pensou como é um quilo de batatas pré-fritas congeladas é mais barato do que um vulgar quilo de batatas que nem descascadas estão?

É claro que os alimentos altamente processados, cheios de aditivos químicos e desprovidos da maior parte dos seus nutrientes naturais, têm uma data de validade radicalmente mais longa do que os alimentos frescos. Processo e embalo hoje, vendo durante um ano.

O problema é que os alimentos processados aumentam a probabilidade de virmos a sofrer de diabetes, obesidade, doenças cardiovasculares e cancro, coisa que o material promocional destes alimentos nunca refere, tal como as relações públicas da indústria da saúde não falam dos estudos que afirmam que a maior parte destas doenças pode ser revertida através da alimentação. Saber que para ser saudável basta comer vegetais frescos, alimentos inteiros e ler os ingredientes das embalagens para evitar aqueles que não conseguimos imaginar no seu estado natural, não é nada fascinante. Nem vende medicamentos.

 Para todos os efeitos, toda a gente sabe o que deve comer. No entanto, na alimentação pós-moderna, a confusão paira e, para tornar a nossa vida muito mais fácil e deslumbrante, temos os especialistas em nutrição que descobrem coisas sensacionais e explicam o que devemos comer. Temos a indústria alimentar que refaz e publicita os seus produtos de acordo com as novas descobertas. E a comunicação social que tem sempre grandes novidades sobre nutrição e saúde para escrever. Todos ganham, menos quem tem de comer.

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A paixão.

Para encontrar um sentido de vida, que nos faça esquecer a nossa mortalidade e nos abstraia das misérias do quotidiano, podemos escolher caminhos.

O da contemplação, que é a via do estudo e estudar-se. Trabalhar o espírito. Reflectir, tentar descobrir a verdade e aprofundar o pensamento abstracto. Pensar no ser enquanto ser. “O otium permite-nos fazer um exame de consciência, estudar, entregar-nos a diversos exercícios espirituais, praticar a virtude, e também aproveitar o tempo disponível. (…) um período de reconstrução de si mesmo e da sua conexão com o mundo.” Séneca, em Da Brevidade da vida.

O da acção, um envolvimento activo numa causa, que pode ser a liberdade, a humanidade, a igualdade, a justiça. “Toda a espécie de envolvimento activo nos assuntos deste mundo.” Hannah Arendt, em A Condição humana.

E o da distração e da transgressão: a da ardência, da embriaguez, da desordem, da diversão, da boémia, do excesso. A de andar a passear, à deriva."Para o perfeito Flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto no mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais, que a linguagem não pode definir senão toscamente." Baudelaire, em O pintor da vida moderna.

A paixão empilha-os todos. É uma ideia, uma causa, que nos impele a contemplar, agir, cooperar, arder e andar à deriva. Absorve todos os sentidos, a vida toda.

Ou, como diria Musil,

“A paixão é o estado no qual todos os sentimentos e ideias se encontram no mesmo espírito.”, em O homem sem qualidades.

Deve ser por isso que o amor é “o objectivo último de quase todas as aspirações humanas”, nas palavras de Schopenhauer.

E será também por isso que dá origem aos maiores sofrimentos.

Quando acaba um amor, não é a pessoa que se perde. É o sentido da nossa existência.

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Imagens no subsolo.

Ontem, sonhei com ele. Tinha ar de quem ia para um concerto de rock e olhou para mim como se eu fosse uma aparição. Disse-me que gostava de música, praia e sítios sem ostentação. Perguntei-lhe o que fazia para ganhar a vida. Respondeu que era responsável mas não fazia disso profissão. Fazia o que fosse preciso. Tinha dinheiro para não depender de ninguém. Não lia muito, porque isso dava-lhe cabo da cabeça, mas gostava muito das histórias contadas, dos filmes e dos serões. Falava enquanto organizava umas coisas lá em casa e ia mexendo o corpo, à medida que mudava os discos na aparelhagem de som. Estava moreno. Era verão.

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Disciplina.

Toda a gente sabe que os conteúdos dos livros obrigatórios ou recomendados das escolas portuguesas são pensados e desenhados, em primeiro lugar, pelo Estado e, em segundo lugar, por grandes empresas editoriais. Toda a gente também sabe que o que os professores fazem não é transmitir informação mas ordenar que os alunos façam os trabalhos ou os exercícios de uma determinada forma. Quando os estudantes não fazem o exercício como os professores ordenam, têm má nota ou reprovam, tendo que repeti-lo até estarem de acordo com as suas ordens. Assim, o sistema de educação português tem uma tripla disciplinação do pensamento. Primeiro, é sempre a favor do Estado, segundo, nunca é contra as grandes empresas, terceiro, é imposto por um grupo profissional também formado com estas orientações.  É por este motivo que as artes, nas suas variadas formas: plásticas, cinematográficas, literárias, musicais, criadas autonomamente, são a maior fonte de emancipação do ser humano.

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Na fábrica de comida.

Não havia alternativa. Para sobreviver, teria que trabalhar nos tempos livres que lhe restavam. Todos os dias, apenas parava para comer e dormir, o que não conseguia fazer pela falta de sentido de vida. A ela, nem emprego lhe davam. Diziam que eram trabalhos muito exigentes para mulheres.

No dia seguinte, vi isto afixado:

Aviso todas as pessoas para se retirarem da fábrica até às 9h55, hora exacta em que será bombardeada. O objectivo é alertar para a submissão do amor ao capitalismo, pelo que apenas pretendemos explodir com as instalações. O anarquista continuará no anonimato. Apenas se sabe que este é um acto feminista.

Sobreviveram todos. Agora, já não é a fábrica que faz a comida. Somos nós que plantamos, transformamos, cozinhamos e comemos. Todos têm tempo e conseguem dormir. E, diz-se por aí, o nosso ex-chefe, que estava impotente, faz amor muitas vezes.

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Desligar.

Se o controlo é hoje exercido através da internet, a resistência ao poder será feita pelos hackers ou, por qualquer pessoa, no momento em que se desliga.

Os defensores do Estado deverão garantir a existência de espaços onde os cidadãos possam não-comunicar ou recusar-se a fazê-lo.

Os que acreditam que o Estado é uma forma de legitimação do exercício de poder de uma minoria sobre a maioria, aprenderão a piratear as suas estruturas virtuais. A criar vírus que apaguem os dados dos cidadãos das bases de dados das empresas, por exemplo.

Os desobedientes desligar-se-ão.

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Fronteiras imperceptíveis.

Fazer um vídeo ou um filme, escrever um texto, desenhar, pintar, esculpir ou compor uma música para mim, é muito diferente de o fazer para uma empresa. Na primeira, apenas estou limitada pelas marcas deixadas no meu pensamento. Na segunda, estou limitada, não só pelas marcas do pensamento de quem me paga, como também, e sobretudo, pelo objectivo da criação, o lucro.
Ainda que separados por uma fronteira imperceptível, os gestos, o pensamento e a criação de um realizador, ilustrador, escritor ou músico nas empresas culturais ou nos seus espaços pessoais são radicalmente diferentes.

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