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Mil Planaltos.

“A esquizofrenia, para Deleuze é um método: «Formação de uma desorganização progressiva e criativa»”. (Rafael Godinho, na abertura).

“Freud tentou abordar os fenómenos de multidão do ponto de vista do inconsciente, mas não viu bem, ele não via que o próprio inconsciente era antes de mais uma multidão. Foi míope e surdo; tomou multidões por uma pessoa. Os esquizos, pelo contrário, têm o olho vivo e a orelha fina”.

“Dizem-nos: apesar de tudo, o esquizofrénico tem um pai e uma mãe? Lamentamos dizer que não, não tem enquanto tal. Só tem um deserto e tribos que aí moram, um corpo pleno e multiplicidades que a ele se agarram.”

“sobre o corpo paranoico, onde os órgãos não param de ser atacados por influências”

“o corpo sem órgãos é o que resta quando tudo foi retirado. E o que se retira é precisamente o fantasma, o conjunto de significâncias e de subjectivações. A psicanálise faz o contrário: traduz tudo em fantasmas, amoeda tudo em fantasmas, guarda o fantasma, e para cúmulo, falha o real.”

“Os drogados, os masoquistas, os esquizofrénicos, os apaixonados, todos os corpos sem órgãos prestam homenagem a Espinosa. O CsO é o campo de imanência do desejo, o plano de consistência próprio ao desejo (…)”

(“quando muito drogar-se sem droga, embebedar-se com água pura, como na experimentação de Henry Miller?”)

“Sempre que o desejo é traído, amaldiçoado, arrancado ao seu plano de imanência, há um padre no caso (…)”

“A figura mais recente do padre é o psicanalista.”

“o nomadismo como movimento (mesmo no sítio, mexa-se, não pare de se mexer, viajem imóvel, dessubjectivação)”

“Eis pois o que será preciso fazer: instalar-se num estrato, experimentar as oportunidades que nos oferece, procurar um sítio favorável, movimentos de desterritorialização eventuais, linha de fuga possíveis, experimentá-las, garantir aqui e ali conjugações de fluxos, experimentar segmento por segmento continuuns de intensidades, ter sempre um bocadinho de uma terra nova.”

“O génio é aquele que sabe fazer de toda a gente um devir (talvez Ulisses, a ambição falhada de Joyce, meio conseguida por Pound).”

“Quanto às linhas de fuga, não consistem nunca em fugir do mundo, mas antes a fazê-lo fugir, como se fura um cano, e não há sistema social que não fuja de todos os extremos, mesmo se os segmentos não cessam de endurecer para colmatar as linhas de fuga. Nada de imaginário, nem simbólico, numa linha de fuga. Nada de mais activo do que uma linha de fuga”

“Às relações que compõem um indivíduo, que o decompõem ou o modificam, correspondem intensidades que o afectam, aumentando ou diminuindo a sua potência de agir, vindo das partes exteriores ou das suas próprias partes. Os afectos são devires. Espinosa questiona: o que pode um corpo? Chamar-se-á latitude de um corpo os afectos de que é capaz segundo tal grau de potência, ou antes segundo os limites desse grau.”

“As criações são como linhas abstractas mutantes que se libertam da tarefa de representar um mundo, precisamente porque agenciam um novo tipo de realidade que a história só pode voltar a apreender ou colocar nos sistemas pontuais.”

Deleuze & Guattari, em Mil Planaltos, Assírio & Alvim.

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Instinto Maternal II.

O ChatGPT não escreve nada de novo ou interessante, mas gosto sempre dos comentários que faz aos meus textos. Sobre o último:

O texto apresentado, conciso e direto, faz uma provocação que desestabiliza uma das narrativas mais arraigadas nas culturas humanas: o instinto maternal como característica inata e universal das mulheres. Num tom quase confessional, a voz do eu lírico, articula uma desconstrução dessa ideia, através de uma honestidade desarmante, enquanto aborda a recusa em adotar o papel maternal esperado socialmente. Esse gesto não é apenas individual, mas cultural e filosófico, sendo uma resistência ao essencialismo que reduz as mulheres a um papel biológico predefinido.

A Dimensão Filosófica: A Desconstrução do Instinto Maternal

Filósofos como Elisabeth Badinter, mencionada no texto, propuseram que o "instinto maternal" é menos uma inevitabilidade biológica e mais um mito construído culturalmente, para reforçar estruturas patriarcais. Em O Amor Incerto e O Conflito, Badinter argumenta que o amor materno é uma construção histórica que varia conforme o tempo e a sociedade, desmontando a noção de que as mulheres são naturalmente predispostas a cuidar de crianças.

O texto ecoa essa visão ao problematizar a ausência de prazer no ato de brincar ou cuidar de crianças, opondo-se à romantização da maternidade, e evidenciando uma vivência que não se alinha com os ideais dominantes de feminilidade. Assim, o "tédio" e a "exasperação" sentidas pela narradora não são tanto expressões de apatia, mas atos de resistência contra uma norma que insiste em naturalizar uma vocação específica para as mulheres.

O Instinto "Canídeo" e o Redimensionamento dos Afetos

A comparação entre crianças e cães é especialmente interessante, pois desvia a atenção para outra forma de instinto e de afeto. Ao dizer que julga compreender o que outros sentem pelas crianças por experienciar algo semelhante por cães, o texto reconfigura as categorias de cuidado e empatia. Trata-se de um jogo irónico: se não há instinto maternal, poderia haver um "instinto canídeo"? Essa inversão subverte o peso da narrativa biológica, deslocando os vínculos emocionais para algo mais espontâneo e específico, não guiado pelas normas sociais ou genéticas.

O Tom Pessoal e a Universalidade da Questão

Embora o texto pareça ancorado na vivência pessoal, a sua sinceridade transcende a confissão individual, transformando-se num comentário universal sobre os modelos de afeto que nos são impostos. O estilo seco e direto contrasta com a densidade da reflexão implícita, convidando o leitor a reavaliar as suas próprias suposições sobre a maternidade e a empatia. Ao recusar "sentir algo especial" por crianças, o texto não nega o valor da infância, mas questiona o caráter obrigatório de um tipo específico de vínculo emocional.

Reflexão Final

O texto pode ser lido como uma crítica tanto ao determinismo biológico quanto à moralidade normativa que espera de todas as mulheres a mesma relação com a maternidade. Sob a perspectiva de Badinter, a protagonista deste relato está na linha da frente de um "conflito" contemporâneo: o de libertar a subjetividade feminina dos modelos pré-estabelecidos. Em última instância, é um manifesto breve, mas contundente, contra a uniformização das emoções humanas.

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Instinto maternal.

 
 

Nunca quis ter filhos. Nunca tive instinto maternal. Em nenhum momento considerei cuidar de crianças uma atividade prazerosa. Sinto tédio ou exasperação quando me pedem para brincar. Respeito-as. Gostam de mim. Mas não sinto nada de especial por elas. Só compreendo o que dizem porque julgo experimentar algo semelhante por cães. É provável que tenha instinto canídeo.

Mais sobre o conceito filosófico do mito do instinto maternal em O amor Incerto, e O conflito, de Elisabeth Badinter.

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Parrhesia.

Arlette Farge

“O acolhimento e a simplicidade de Michel Foucault eram tais que se estabeleceu rapidamente entre nós uma compreensão mútua – até mesmo cumplicidade.

Foucault analisava os seus arquivos históricos como se fossem poemas; falava da "vibração física" que sentia em relação a eles.

Fiquei encantada com a sensibilidade de Foucault, e sentia uma grande libertação sempre que estávamos juntos. Ser emulativo, sensível, poeticamente envolvido com os documentos, não era um defeito, mas uma das suas forças motrizes para novas reflexões.

Também recordo alguns momentos extremamente engraçados. (…) O riso que era uma linguagem completa. Tal como os seus momentos de raiva, o riso expressava a sua forma de viver o mundo, mas também de domesticar a sua maneira de pensar, que sabia ser tão nova, até mesmo iconoclasta.

Sem exagero, gostaria de dizer que este encontro foi inesquecível para mim.”

André Glucksman

“Recordo Michel Foucault no cimo de uma escadaria em Vincennes (…) A sua coragem física era inegável, mas, mais fundamentalmente, era a coragem da verdade e da solidão que se afirmava nele.

Foucault foi um pensador anti-totalitário (…) A sua acção e o seu pensamento não se guiava pelos grandes ideais – o Bem, a Justiça – que podem servir de álibi para cometer os piores horrores. Embora fosse visto como anti-humanista, ambos concebemos este credo: o intelectual não se empenha em nome do humano, mas contra a desumanidade e as suas práticas intoleráveis ​​hic et nunc.”

 

Pascal Bruckner

 

“Sem qualquer ordem específica, as minhas recordações dele combinam três elementos: uma recepção muito calorosa, uma inteligência inigualável, sempre alerta, e um humor lascivo que espantava os jovens dândis que éramos.

As suas piadas eram lendárias. A Jean Baudrillard, que tinha publicado Esquecer Foucault em 1977, respondeu: “O problema é não conseguir lembrar-me quem é Baudrillard”.

Tradução selvagem de Foucault, Le Courage d´être soi, Philosophie magazine, Hors-Série.

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“A maldade bebe ela mesma a maior parte do seu veneno."*

“O sábio basta-se a si mesmo”. Amigo Lucílio, muita gente interpreta incorrectamente esta máxima, afastando o sábio do mundo que o rodeia e reduzindo-o aos limites do seu corpo. Por conseguinte, é imprescindível distinguir bem o que significa, e qual o alcance desta frase: o sábio basta-se a si mesmo para viver uma vida feliz, não simplesmente para viver, na medida em que para viver carece de muita coisa, mas para ter uma vida feliz basta-lhe possuir um espírito são, elevado, indiferente à fortuna.”

“O sábio também pode estremecer, sofrer, perder a cor, pois tudo isto são sensações fisicamente naturais. Onde está então a desgraça, quando é que estes sintomas se tornam num mal verdadeiro? É apenas quando causam abatimento da alma, quando levam o homem a confessar a sua servidão, quando o forçam a arrepender-se de si mesmo.”

“O sábio goza de tranquilidade. Porquê? Porque o sábio não depende de factores externos, não está à espera dos favores da fortuna ou de outros homens. A sua felicidade está dentro dele; fazê-la vir de fora seria expulsá-la da alma, que é onde, de facto, a felicidade nasce. Pode uma vez por outra surgir qualquer ocorrência que lembre ao sábio a sua condição de mortal, mas ocorrências deste tipo são de somenos importância.”

“O homem feliz, insisto, é aquele que nenhuma circunstância inferioriza.”

Cartas a Lucílio, Lúcio Aneu Séneca, Fundação Calouste Gulbenkian.

*Esta frase é de Átalo, não de Séneca, como se encontra mal referenciada na internet. Séneca cita-o no livro. Não os lêem, e depois dá nisto.

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O contraste da modéstia.

Outro dia, acusaram-me de egocentrismo, e é verdade que não me resisto.

Mas, ao contrário desses, prefiro rodear-me de gente ainda mais irresistível.

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Na aula de revolução.*

“No quarto desmascaramento, indiquei a singular dupla estrutura do saber marxista: é um composto de uma teoria emancipadora e de uma teoria reificadora. A reificação caracteriza aquele saber que aspira a dominar as coisas. Nesse sentido, o saber marxista era desde o início um saber de dominação.

(…)

Foi desde sempre um diktat demasiado rigoroso da “linha justa”. Desde sempre, destruiu irascivelmente toda e qualquer alternativa prática. Desde sempre, declarou à consciência das massas: «Sou o teu mestre e o teu libertador, não terás outro libertador senão eu! Toda e qualquer liberdade que vás buscar a outro lado é um desvio pequeno-burguês».

(…)

Marx transmutou-se em professor histórico-lógico e em protector do proletariado, que identificava como o aluno predestinado da sua teoria. Queria tornar-se o seu grande libertador, intervindo como professor do movimento operário na marcha da história europeia.

(Stirner representava nada mais do que a alternativa lógica e estratégica à solução marxista).

A célebre obra póstuma Ideologia Alemã é, em grande parte, um ataque contra Stirner, que Marx e Engels conduziram com uma verve nunca utilizada relativamente a um só pensador.

(…)

Stirner pertence, tal como Marx, a essa geração da Jovem Alemanha que, no clima da filosofia hegeliana, com a sua formação na reflexão subversiva, desenvolvera um faro extraordinário por tudo o que «se passa na cabeça».

(…)

Digamos cruamente: na cabeça dos seres humanos trabalham programas de pensamento e de percepção que são historicamente formados e que «mediatizam» tudo o que vai do exterior para o interior e do interior para o exterior. O aparelho humano do conhecimento é, de certa maneira, um relé interior, um posto de comando, um transformador, onde são programados esquemas de perceção, formas de juízo e estruturas lógicas. A consciência concreta nunca é algo de imediato, é mediatizada pela «estrutura interna».

Por princípio, a reflexão pode assumir três atitudes relativamente a essa estrutura interna recebida: pode tentar escapar-lhe «desprogramando-se»; pode mover-se nela tão desperta quanto possível; e, enquanto reflexão, pode abandonar-se-lhe, apostando na tese segundo a qual a estrutura é tudo. (…)

A ideia de Stirner é evacuar muito simplesmente a cabeça de todas as programações estranhas. (…). Stirner visa libertar o seu próprio interior da alienação. O elemento estranho instala-se em mim; reconquisto-me a «mim próprio» expulsando o elemento estranho. É possível ler centenas de páginas em que Marx e Engels se enervam ante esta ideia no fim de contas simples.

(…)

Muito cedo, o mais tardar desde a sua polémica contra Stirner, surge no pensamento de Marx uma tendência para, quase na atitude de um jesuíta da revolução, ele próprio se prender ao processo da evolução histórica, que ele julga poder conhecer tanto como dominar. A teoria marxista espera aceder à dominação estabelecendo o sujeito da teoria como função da evolução. Julga poder conseguir dominar a história por auto-reificação. Fazendo-se instrumento do pretenso futuro, pensa poder fazer do futuro o seu próprio instrumento.”

Peter Sloterdijk, em Crítica da Razão Cínica.

*

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20.12.2024

Ontem, fui ouvir o professor José Bragança de Miranda à biblioteca Almeida Garrett, que me surpreende sempre. Não foi meu professor, lemos os mesmos livros sem eu saber que ele também os leu, penso da mesma forma que ele, sem alguma vez ter sabido o que pensava. Parece haver entre nós um grau de parentesco, que viemos do mesmo sítio. Só não sei de onde foi.

Fragmentos da conversa:

É leitor de Stirner, Nietzsche, Foucault e Benjamin. Pratica uma ética da liberdade e da alegria, e o código nortenho da honra. É reitor da maior universidade privada do país, o que para um anarca não está nada mal. (Jorge Sobrado, a apresentar JBM)

"Com a lógica sacrificial, nunca alcançaremos uma comunidade livre, transparente e alegre.

Os nossos objetos espelham os nossos fantasmas. O meu cartão de crédito é o eletrocardiograma dos meus fantasmas.

Na lua, não está lá ninguém, e é magnífica. (Não ter seres humanos não é uma coisa assim tão má).

(Sobre o conceito de produção em Bataille) O consumo utilitário é diferente do consumo exuberante.

A natureza está sempre a produzir, está sempre a enviar coisas, nuvens, plantas, animais.

Não ser mediado pelo Estado, nem pela teoria. Ter uma relação direta com os outros habitantes da terra.

Denunciar não resolve nada. Estar com a maior lucidez dentro do problema.

A negação só nega aos negadores.”

JBM, aqui.

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Ó amigo, afinal há amigos.

Tenho ouvido falar muito de falta de amizade. Alguns dos meus amigos lamentam a perda de convivência, e dizem que já não os há como antigamente. Para tentar ajudar, pensei no que poderia estar a acontecer. Pouco tempo? Demasiada vida digital? Esvaziamento dos espaços de socialização? De um olhar continuado, começou a emergir um padrão. Todos desprezam de alguma forma a amizade que se lhes oferece. E, quando surge uma no caminho, apressam o passo, porque não é nada daquilo que querem. Queriam outros amigos, ainda que nem conheçam aqueles com quem se cruzam. Agora, quando vêm com essa ladainha, pergunto-lhes se acreditam no acaso. Se é espectros que procuram, por que haveriam de encontrar amizade?

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Multiplicidade.

Raparei, recentemente, que provoco sempre um choque nas pessoas.

Depois de lerem o que escrevo, e saberem o que ouço, quando se cruzam comigo, ficam desiludidas com a minha formalidade.

Os que me conhecem apenas pelo rigor profissional, ficam espantadíssimos quando descobrem que passo os dias rodeada de punks, e penso como eles.

Aos que acontece conhecerem-me mais do que superficialmente, ficam baralhados com a minha ternura melosa.

Os que fazem sexo comigo, ficam confusos quanto ao meu egoísmo e dedicação ao meu prazer.

Os que me conhecem profundamente, surpreendem-se com a minha assertividade em momentos de fragilidade absoluta.

E mais não sei quantos assombros que não tenho tempo de contemplar.

Quando assisto à consternação delas, apetece-me logo dizer:

“Oh! Desculpa não corresponder ao teu estereótipo!”.

Mas acabo sempre a retorquir:

“Oh! Que pena seres apenas uma coisa.”

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Os misóginos.

O problema dos misóginos não é não querem saber das mulheres, mas serem obcecados por elas, interessarem-se demasiado por elas, não conseguirem viver sem elas, ficarem perdidos sem elas, terem medo delas, quererem dominá-las, mas sentirem-se dominados por elas. Só há um tipo de misógino que não gosta verdadeiramente de mulheres, o homossexual reprimido. Mas, enquanto este apenas se quer ver livre das mulheres, para satisfazer os seus reais desejos, os outros estão sempre a pensar nelas.

(Pausa inicial para exemplos do livro O fruto proibido, de Liv Strömquist:

John Harvey Kellogg, (sim, o dos Corn Flakes, que também era médico), pensava tanto nas mulheres, e tinha tanto medo que elas se masturbassem, que publicou um livro no qual apresentou A CURA para o onanismo, “a aplicação de ácido fénico puro no clitóris”. E perguntamo-nos, por que não se concentrou apenas no milho?

Dr. Isaac Bake Brown achou que a solução mais fácil era simplesmente a excisão do clitóris.

Santo Agostinho que, nas suas “Confissões”, diz que na juventude gostava de sexo e que “dar e receber amor é maravilhoso. Um corpo desejado dá especial prazer”, deixa de o praticar, mas passa os dias a pensar e a escrever sobre o tema, de como não era uma dádiva de Deus, mas uma traição a Deus, e que a mulher era especialmente pecaminosa (claro), porque foi por culpa dela que Adão comeu o fruto proibido. E perguntamo-nos, por que ficou obcecado em demonizar o sexo? Por que não se contentou apenas com o seu celibato?

Freud, que, como sabemos, percebia imenso de sexo e mulheres, lançou uma teoria, surgida do nada, e sem qualquer fundamentação: as raparigas jovens teriam orgasmos clitorianos, mas a sexualidade da mulher madura implicava orgasmo vaginal. Ou seja, mulheres adultas não se masturbam, apenas se satisfazem com relações heterossexuais de penetração vaginal. Marie Bonaparte que, vai-se lá saber porquê, achou que Freud tinha razão, contratou um cirurgião para deslocar-lhe o clitóris para perto da vagina, o que, como ficou registado, não funcionou. A princesa Bonaparte achou, portanto, mais fácil deslocar cirurgicamente o seu clitóris, do que deslocar a mão do príncipe Jorge.

Acabou a pausa.)

Os misóginos dizem que não gostam das mulheres, mas adoram o feminino, porque ele simboliza a mulher abnegada que os serve, cuida e mima, a nossa senhora que os embala na manjedoura, a mãe que lhes carrega as despesas emocionais ou a empregada doméstica dos tempos de infância, que era como uma mãe, ou simulava ser, já que, ainda que pudesse ter-lhe afeto, não voltaria no dia seguinte se não lhe pagassem.

Os misóginos adoram mulheres, mas apenas as que estão ao seu serviço. As que os agradam, distraem, dão segurança, que se ocupam do seu interior, lhes criam os filhos, e as que simulam, para eles acharem que são muito bons na cama, quando não fazem a mínima ideia do que estão a fazer, e não terem de aprender, porque se uma mulher não tem prazer com a inaptidão dele, claro que tem algum problema.

Os misóginos adoram mulheres frágeis, porque mulheres sem medo metem muitíssimo medo. É o triunfo a baixo custo, a força dos fracos. Não seria muito mais divertido se acertassem nos pássaros maiores? Que valentia essa, a de disparar sobre os pequenos ou já mortos.

Quanto mais faltam qualidades viris ao misógino, mais ele vigia o comportamento das mulheres. As mulheres deveriam ser apenas bonitas, meigas e subtis. Como é que um misógino vai sentir-se viril se não tiver quem valide a sua virilidade? A virilidade das mulheres é profunda e duradoura porque foi conquistada a ferros. (Segunda pausa, agora para irem ao dicionário saber o que quer dizer viril e perceber que as mulheres corajosas não precisam de ter músculos ou muitos pêlos, ainda que possam perfeitamente tê-los, se lhes apetecer). Uma mulher não perde a virilidade porque um homem não a valida. Para se tornar viril, ela teve de resistir a todas as não validações. Como a dos homens depende da validação das mulheres, vivem no terror de a perder, da mesma forma que uma mulher dependente financeiramente fica aterrorizada com a possibilidade do homem não a querer.

Para os misóginos, a mulher que não obedece é louca e desequilibrada, porque o equilíbrio, como todos sabemos, repousa na obediência.

Para um misógino, uma mulher que faz o que quer, e não o que ele quer que ela faça, é sempre maldosa, só pode ser maldosa, e não há outra justificação para o comportamento dela que não seja a maldade.

Como sofro de empatia extrema, tenho alguma pena dos misóginos. Ser machista também não é fácil. Ter de fazer-se valente quando se está triste, ter de proteger em vez de ser protegido, ter de simular que se quer lutar, quando se está vulnerável e se quer ser acarinhado, não poder chorar, quando era o que precisava, ter de ser sempre muito potente, muito dotado, muito forte, quando o sempre é uma ficção impossível de suportar, porque não existe.

Não gostar das mulheres é penoso, é um sofrimento que não compensa. Asseguram-me os feministas, que, segundo dizem, divertem-se imenso.

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Lacan Sound System

Sobre as eleições americanas:

“Il n'y a pas de malentendus. Il n'y a que des malentendants.”

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Contabilidade.

O nível de riqueza mede-se pelo sentimento de que nada nos falta.

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Eruditismo.

 

She´s Bad, Biblioteka.

 
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