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Vida, código, matéria.

"Esta alteração, do código processual centralizado para código distribuído orientado a objetos, é a mudança histórica mais importante para o surgimento da vida artificial."

Alexander R. Galloway, em Protocol.

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Humanismo.

Sempre que há uma catástrofe humana, as redes sociais impregnam-se de frases muito belas. No outro dia, apareceu-me uma que me afectou profundamente: "Vejo humanos mas não vejo humanidade”. E lembrei-me logo do meu professor do secundário que uma vez me disse que devia ser “mais humana”, em resposta a uma observação minha que dizia que “não andava aqui para libertar a humanidade da opressão. Quanto muito, aliviava a dor de cabeça do meu colega de carteira porque tinha trazido um ben-u-ron.”

“Agora, aliviar todas as dores de cabeça deste mundo?”. “Mesmo que quisesse”, disse-lhe, “que não é claramente o caso, não ia conseguir, porque o que cria dores de cabeça a uns, não cria a outros. E eliminar uma causa de dor de cabeça de uns, ia dar muitas dores de cabeça a outros. Por isso, em vez de ter a pretensão de saber e querer eliminar as dores de cabeça de toda a “humanidade”, resolvo as minhas e as do colega do lado. Pode ser que outros, ao verem como resolvi a minha, resolvam também a deles, se quiserem. Valha-me obrigá-los a resolver aquilo que eu acho que são as dores de cabeça deles! Inclusivamente, professor, sei de muita gente que precisa da dor de cabeça. Li, anteontem, que há muitos escritores que não conseguem escrever sem ela. Nos dias sem dor de cabeça, vão para a praia e põem-se a namorar. Além disso, nos dias seguintes à inactividade intelectual, ficam com uma grande dor de cabeça provocada pela frustração de não avançarem no trabalho.

E quem é que define o que é ser “mais humana”? É o professor? E se eu achar que sou mais humana por não querer que todos os “humanos” sigam a minha ideia de “humanidade”?

Já o estou a ver num alto palanque a recitar o novo “código da humanidade” e a selecionar quem fica de fora das determinações específicas.“Este não é humano, este é quase humano, este é meio humano.”

Se calhar é por isso que agora vendem tantos comprimidos para as dores de cabeça. Ou porque nunca somos suficientemente humanos ou porque, digo eu, cansamo-nos de ser demasiado humanos”.

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Sem teatro.

Lembro-me de, quando era mais nova, fazer muito teatro. Além das peças no colégio, em que escolhia sempre o inferno do Auto da Barca, produzia muitas sem palco. Para existir, tinha de desempenhar o papel de obediente, eloquente, mas sem confrontar, bem comportada, mas socialmente expansiva, demonstrar riqueza, sem ostentar, destacar-me, sem fazer demasiado ruído, ser sexy, mas pura e inocente, magra, mas com apetite, belíssima, mas sem vaidade, aluna de excelência, sem estudar muito, inteligente, mas não ameaçadora, culta, mas sem opinião. Ganhei várias coisas a fazer estas personagens, sobretudo depressões profundas.

Foi apenas quando me despi delas, em atos de coragem, uma após a outra, que comecei a viver. Lembro-me do primeiro dia em que não acordei angustiada. Tenho uma fotografia dessa manhã, que guardo até hoje. Depois de tantos anos de existência, foi o primeiro em que senti paz. Vivia sozinha, tinha dificuldade em pagar as contas, mas estava rodeada de pessoas que me apreciavam, sem maquilhagem, se falasse muito ou não dissesse nada, quando achava ser a melhor ou na fragilidade absoluta. Foi nesse momento, quando não precisei ser nada, que pude finalmente começar a ser tudo.

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Amizade

Quando conheço uma pessoa, tiro-lhe logo o atrelado. Tiro-lhe o nome, as roupas de marca, o carro, a casa, os equipamentos electrónicos e o resto dos acessórios. Se sem isso a pessoa me interessar, ouço-a com atenção e respeito-a. Se não tiver mais do que isso, não lhe dou atenção nenhuma. Não é por mal. Apenas prefiro fazer amizade com pessoas do que com objectos.

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Hierarquias sociais.

Os arrumadores de carros aqui, na universidade, estão sempre à espera da moedinha. Os meus amigos deputados estão sempre à espera da noticiazinha. Os primeiros dizem que é para ajudar a avó doente, os segundos dizem que é para ajudar todas as avós doentes deste país.

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Da filosofia.

Desaparafusar o cérebro. É isso que quero, e é para isso que ela serve.

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Introdução

Antes de mais, gostaria de dizer-vos que vim aqui falar bem de todos, e criticar ninguém. Pretendo apenas apreciá-los, etilizar com os conceitos, e, se tiver sorte, desconstruir e criar outros. Se pensar diferentemente, acrescentarei tão somente um ponto, outra perspetiva, e não farei uma conta de subtração às ideias dos outros. Procuro uma versão que tudo acolhe – e sabem bem o que acontece quando nos dão abrigo.

Também não desejo demonstrar inteligência ou impressionar. Venho apenas para a festa, dançar com as imagens, brindar aos encontros e, se necessário, curar a ressaca dos excessos no dia seguinte. Portanto, o mais importante será evitar os fura-festas, os sem potência de criação, os que encerram tudo em caixas, e, colocando-se a um canto, criticam os movimentos dos dançantes, sem alguma vez conseguirem dar um passo de Twist. Dizem que as roupas não são adequadas, que deveríamos dançar mais depressa ou devagar, e que os gestos são demasiado tímidos ou exuberantes. Acontece que as danças tímidas são-no maravilhosamente, e as exuberantes também. O que interessa é ir para a pista, abandonar os recantos escuros dos encerramentos e envolver-se em todas as intensidades da luz. E se um dia o corpo deixar de mexer ou emperrar-se, dança-se como um robot. Ou inventam-se danças ciborgues e organizam-se outras festas. Porque as há infinitas. Basta ter curiosidade e perguntar: onde e com quem posso dançar?

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Pensamento crítico ou teoria da conspiração?

Ironia da história: é na era da informação omnipresente e da ciência dos dados que nascem cada vez mais teorias da conspiração. Diz a definição que são discursos críticos sobre o desenvolvimento da História e pressupõem a existência de um grupo de pessoas poderosas que governam o mundo. No dicionário Oxford, é “a crença de que um acontecimento foi planeado secretamente por organizações poderosas”, “com intenção de conseguir ou de esconder algo”, acrescenta o Priberam. Se alongarmos o argumento, não podemos encontrar algumas destas ideias em exercícios intelectuais? Não há grupos de pessoas com poder suficiente para decidir sobre vida de muitas outras? Questionar os métodos e resultados científicos não faz parte da evolução da própria ciência? Não há muito para além dos discursos oficiais, que, independentemente dos motivos, se pretendem secretos? O que distingue uma teoria da conspiração de um pensamento crítico? Para tentarmos responder a estas questões, façamos um exercício filosófico, imaginando o que diriam Platão, Nietzsche e Descartes sobre o tema.

Platão

As teorias da conspiração são ideias falsas às quais estamos acorrentados, como os prisioneiros da caverna. Lembram-se do que escrevi n´ A República? Num diálogo entre Sócrates e Glauco, descrevo uma caverna onde se encontram prisioneiros acorrentados, que apenas conseguem ver sombras. Estando lá desde a infância, e nunca tendo saído, acreditam que as sombras que vêm são a única realidade existente. Quando um é libertado, vê a luz do sol e objetos reais pela primeira vez, doem-lhe os olhos e supõe que são menos verdadeiros do que as sombras. Se decidisse regressar à caverna, e contar o que tinha visto aos outros prisioneiros, diriam que teria desenvolvido problemas de visão, e, se tentasse arrastá-los para fora da caverna, instigando-os a ver os objetos reais, poderiam sentir-se ameaçados e até matá-lo. Trazendo esta alegoria para o presente, podemos dizer que as teorias da conspiração são as sombras, e os prisioneiros são os que acreditam nelas. Os conspiradores não só asseguram que as sombras são reais, como afirmam que quem tem mais conhecimento está com a visão distorcida. Vivem no mundo sensível, o das aparências, baseado em suposições e opiniões rasas. A liberdade deles corresponderia à saída da caverna, onde está o mundo inteligível, o das ideias. Os defensores das teorias da conspiração não pretendem saber mais, já têm todas as respostas, e perseguem quem os questiona. Mas, prisioneiros da caverna sensível, onde reina a ignorância, podem libertar-se. Leiam livros, estudem o tema, levem as vossas ideias a debate. A vossa condição não é fixa. É uma questão de se porem a caminho. O do conhecimento.

Nietzsche

As maiores teorias da conspiração foram criadas por filósofos. Platão e outros pensadores criaram “outros mundos”, que dão a ilusão de haver locais onde existe a perfeição, e inventaram “conceitos-múmia, ficções que enfraquecem os indivíduos e são uma renúncia à vida aqui e agora. Esses mundos, que só existem nas ideias, são inventados por quem não é capaz de viver no mundo real, o dos sentidos. E, para entrarmos neles, temos de definhar neste. É, portanto, por causa de uma deceção que nos distanciamos da vida e nos projetamos no erro. Devemos questionar esses fantasmas, que são as teorias da conspiração, e reavaliar constantemente as nossas crenças e valores, para promovermos um pensamento criativo, autêntico e livre. Procuremos novas formas de pensar e viver, que reflitam uma genuína e profunda afirmação da vida e da experiência humana. Abracemos o caos e a incerteza da existência, sem recorrer a respostas fáceis e conclusivas que os conspiradores nos querem dar. Sejamos autónomos, capazes de criar os nossos próprios valores, e afirmemos a nossa vontade de poder. O nosso objetivo deve ser a autoafirmação perante quaisquer ideias que nos queiram impor, sejam elas provenientes de forças poderosas desconhecidas, ou de conspiradores enraivecidos. Leiam O Único e a Sua Propriedade, do Max Stirner, porque foi de lá que tirei esta ideia. Como ele diz, vivemos rodeados de “fantasmas”, ideias e sistemas que não têm uma base concreta ou real. São conceitos abstratos que exercem controlo sobre o indivíduo e afastam-no do seu verdadeiro potencial. As teorias da conspiração, como qualquer ideologia ou religião, servem quem as cria, não o nosso interesse. Quem as desenvolveu, encontrou uma forma de convencer os outros que o seu objetivo era altruísta, e visava o bem comum. Mas, se os conspiradores chegassem ao poder, seríamos autónomos e livres? Deixo-vos uma frase que se aplica perfeitamente a este tema: “Todos têm uma ideia muito nobre para embelezar a causa de si próprios”.

Descartes

Não posso deixar de parte a hipótese de sermos marionetas nas mãos de poderes malignos. Mas, mesmo que a verdade não esteja ao meu alcance, uma coisa, apesar de tudo, depende de mim, acreditar naquilo que me tentam impor. Nada me impede de duvidar, sempre. Se essas entidades poderosas existirem, por mais astutas que sejam, não são capazes de me impor nada. Mesmo que abusem de mim, não podem impedir-me de negar-lhes a minha crença e, ao fazê-lo, da experiência interior do meu próprio pensamento. Esta é a ideia que apresentei nas minhas Meditações Metafísicas. Se quando sonhamos não sabemos que estamos a sonhar, como saber se tudo o que sentimos não passa de um sonho também? Se já acreditamos ser verdade algo que afinal não era, como garantimos que o que pensamos agora não é igualmente falso? Pelo prazer de pensar e de levar a cabo o meu raciocínio, coloquei a possibilidade da existência de um “Génio Maligno” que tenta impor-me, constantemente, ideias falsas. A partir dessa ideia, terei de estar sempre alerta, de duvidar de tudo em que acredito. Algumas das crenças que possuo, podem ter sido obra do esforço desse génio maligno que me tentou enganar. Sei que este pensamento se parece com uma teoria da conspiração, mas, ao contrário do conspirador, que acredita cegamente e não consegue impedir-se de aderir àquilo que sabe poder ser falso, na alegria da experiência cartesiana da dúvida, recuso-me a aderir àquilo que sei que é verdade, pelo simples prazer de questionar. E, “mesmo que tudo seja apenas ficção, pelo menos penso. E ao pensar, existo como algo que pensa.” Penso, logo existo.

Findo o exercício, diferenciemos. Se as teorias da conspiração promovem certezas e são alimentadas pela vontade de concluir, o pensamento filosófico encoraja a curiosidade aventureira sobre o funcionamento do mundo. Os filósofos projetam para o futuro vários cenários possíveis e disponibilizam o pensamento à sua própria contestação. Os conspiracionistas detém crenças enraizadas, voltadas para a simplificação do passado, e têm finalidades totalizantes. Se uma teoria filosófica se propagar, é possível que saiamos mais emancipados. Se as aspirações de uma teoria da conspiração se concretizassem, provavelmente todos pensaríamos o mesmo. No mínimo, aborrecido.

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Ensaio sobre a loucura.

A diferença entre os loucos do manicómio e os loucos que estão cá fora é uma questão de poder e dimensão. Ambos atacam traiçoeiramente aqueles que tocam nas suas ideias fixas, mas os primeiros, que estão dominados pelos segundos, ocupam menos espaço.

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Questionário de Proust.

Aqui vai a resposta:

Ideia de felicidade plena

Como disse o Pasolini, “I don't believe we shall ever again have any form of society in which men will be free. One should not hope for it. One should not hope for anything.” O mesmo deve aplicar-se à felicidade plena.

Qual é o seu maior medo?

Não poder desobedecer.

Qual a característica que mais detesta em si mesma?

A autoconfiança traz-me alguns dissabores, mas não consigo detestá-la. Geralmente, gosta-se mais das pessoas inseguras e obedientes.

Qual a característica que mais detesta nos outros?

A maldade.

Que pessoa viva mais admira?

O Professor José Bragança de Miranda.

Qual é a sua maior extravagância?

Camisolas de caxemira.

Qual é o seu estado de espírito mental?

Acelerado e criativo.

Qual considera ser a virtude mais sobrestimada?

A temperança.

Em que ocasiões mente?

Para não ferir pessoas inocentes.

O que gosta menos na sua aparência?

Não mudava nada.

Que pessoa viva mais despreza?

Os fúteis.

Qual a característica que mais aprecia em homens?

Como disse o Deleuze, numa entrevista que deu à Claire Parnet, “as pessoas só têm charme na sua loucura. O verdadeiro charme das pessoas é aquele em que perdem as estribeiras, quando não sabem muito bem em que ponto estão.”

Qual a característica que mais aprecia em mulheres?

A potência.

Que palavras ou frases utiliza excessivamente?

O pronome que e a frase “a minha vida é um fado, e o fado é a minha vida”, que ouvi num concerto punk.

O quê ou quem é o maior amor da sua vida?

O meu marido.

Onde e quando foi mais feliz?

A ler.

Que talento mais gostaria de ter?

Tocar baixo como o Klaus Flouride.

Se pudesse mudar alguma característica em si, o que seria?

Ficaria satisfeita com pouco.

Qual considera ser a sua maior conquista?

Trocar a riqueza pela liberdade.

Se morresse e voltasse, que pessoa ou coisa seria?

O Champion Jack Dupree, sendo que nunca gostei de drogas e já bebi álcool suficiente para as próximas três vidas.

O que mais valoriza nos seus amigos?

O facto de gostarem de mim sem maquilhagem.

Quem são os seus artistas favoritos?

Famosos, o Kandinsky (nome que dei ao meu cão, num momento de lucidez) e a Paula Rego, mas gosto de encontrar beleza nas galerias mais inesperadas.

Quem é o seu herói de ficção?

O Ulrich, d´O Homem sem Qualidades.

Com que figura histórica mais se identifica?

Virginia Woolf.

Quem são os seus heróis na vida real.

Nisso, sou stirneriana.

Quais sãos os seus nomes preferidos?

Eduardo e Pedro.

De que é que menos gosta?

Manipulações deliberadas.

Qual é a sua aversão de estimação?

Pessoas caridosas.

Qual é o seu maior arrependimento?

Ter ouvido os conselhos que me deram.

Como gostaria de morrer?

De overdose. Seria o momento ideal.

Qual é o seu lema de vida?

Amar e desobedecer.

Qual considera ser o seu maior infortúnio?

A minha infância.

Como gostaria de ser?

Sou o que essa criança desejou ser.

Qual é a sua asneira favorita?

Fuck.

Onde gostaria mais de viver?

No inverno, Porto, Lisboa e Paris. No verão, África, Mediterrâneo e Estados Unidos.

Qual é o bem mais valioso que tem?

Amor.

Qual considera ser a maior profundidade da miséria?

A falta de esperança.

Qual a sua ocupação preferida?

Aprender.

Qual é a sua característica mais assinalável?

No outro dia, escrevi a seguinte frase no meu bloco: “Não aconselho o meu caminho a ninguém, mas é o melhor caminho”.

Se Deus existisse, o que gostaria que ele lhe dissesse?

Esta é uma péssima forma de terminar.

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A essência da questão.

-Durante três meses, fiz uma estatística para saber que perguntas as pessoas mais me fazem.

- Uma estatística sobre perguntas?

- Sim. O que as pessoas perguntam diz mais sobre elas do que as respostas que dão.

- Interessante. E quais foram as que ficaram nos primeiros lugares?

- A mais perguntada é “O que fazes na vida?”, seguida da “E ele?”.

- Curioso. E o que costumas responder?

- Amor.

- Amor?

- Sim, amor. E comida.

- Mas isso não responde à questão.

- Responde, pois. O problema é que, além de não saberem fazer perguntas, andam todos obcecados com as respostas erradas.

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Almas gémeas.

”Aprendi desde cedo a viver nas margens, num certo isolamento, salvo pelo quietismo do rio e a convulsão dos livros, os únicos lugares onde eu me sentia bem.

Já nessa altura era um spinozista antes de o ser, queria encontrar toda a alegria possível.

Depois do 25 de abril a Escola de Cinema fechou durante dois anos, portanto nem cheguei a entrar. Meti-me na política. Militei em pelo menos três partidos de extrema-esquerda. Partidos pequenos, mas asfixiantes, e fui sendo expulso de todos. Uma dessas expulsões foi “por desvio teoricista”, porque organizei umas leituras coletivas de livros que não eram bem vistos… de outro fui expulso porque dormi enrolado na bandeira do partido [risos]. Era tudo tão absurdo, e eu que não sou capaz de me entregar absolutamente a nada como era exigido nesses tempos… nunca consigo aderir totalmente a nada, não consigo evitar uma certa distância que me tornava uma pessoa “estranha” nesses ambientes fechados. Mas o que podia fazer se havia em mim essa fissura, essa incapacidade de adesão absoluta ao que quer que seja?

E fui-me afastando da Sociologia, porque é uma ciência que só pode funcionar a partir de grandes abstrações, visões totalizadoras da vida e dos problemas. Parte do princípio de que podemos compreender a totalidade do mundo a partir de uma teoria ou de uma série de conceito e sempre achei essa atitude uma grande arrogância. Acredito mais no poder inventivo da poesia.

A grande ilusão dos modernistas assentava na ideia de que através dessas abstrações poderiam chegar ao Real. Mas “o Real” é aquilo que excede tudo. Por mais muros que criemos historicamente, reais ou teóricos, tudo rumoreja por todo o lado, tudo está em permanente convulsividade.

Já dizia o Lacan, “o Real é o que estraga a festa”.

Porque o Capitalismo, como qualquer outra teoria, não explica tudo ou projeta uma lucidez ilusória.

Claro que, em teoria, tudo aquilo faz sentido, mas a prática da vida humana desmente sempre a perfeição das teorias, porque são sempre uma abstração.

Capitalismo como teoria parece-me manifestamente insuficiente.

Cada ato urgente que exige uma resposta e essa resposta não está pré-determinada por uma posição “imutável” e absolutamente certificada, tem que resultar de uma decisão livre. (…) uma falsa coerência, que nos obrigaria a ser coniventes com tudo seja e esteja decidido pela “direita” e a “esquerda”, consoante os gostos. Ora, esse princípio de coerência é a base da indignidade em política.

Sempre procurei pensar a an-arkhé — que não se pode confundir com o que se tornou o Anarquismo no qual não me revejo.

Ora quem está mergulhado na vida até ao pescoço sabe que nenhuma teoria ou abstração servem.

Não existe “sujeito”, existe sim uma trama de ligações inscritas sobre a carne e as formas, que são coisas muito mais fortes do que “o sujeito”. Tudo que existe é um conjunto de relações formadas por expansões do corpo.

O Real está a ser afetado por cada gesto ínfimo, por cada livro obscuro que é publicado, por cada palavra.

Vivemos num mundo movido pela força do acidente, da transformação, da metamorfose, o que nos indica que qualquer estrutura que vise controlar ou estabilizar o Real está condenada ao fracasso.

A ideia que o Platão desenvolve no livro O Banquete é fundamental: é a ideia de um mundo regido por Eros, deus das ligações, que se opõe ao caos e à desligação.

No princípio não era o verbo, eram as imagens.

Na visão comum considera-se que técnica é uma invenção humana, que por isso mesmo está ao nosso alcance, que a dominamos e podemos aplicar com segurança. Mas existe um elemento de exterioridade que excede as formas históricas da “técnica, as nossas teorias, laboratórios e máquinas. Como sabiam os antigos, pense-se em Aristóteles, a técnica é uma mimesis da Techné da natureza, da “Physis”, que conseguimos replicar, extrair, pôr a funcionar no mundo histórico.  Veja-se o caso do espelho. O espelhar está já em qualquer superfície líquida, nas pedras polidas, mas fixá-lo num “espelho” é algo de novo, acrescenta algo que não existia, mas que é exatamente o espelho.

E fomos aprendendo a duras penas como a ilusão de controlar a História e controlar a Natureza está a levar-nos à beira da extinção. Precisa-se da ilusão para se poder viver, mas viver na ilusão do controlo deixa-nos impreparados para o pior. Na verdade, temos de partir dos problemas, um a um a um, e responder da maneira mais lúcida e potente possível.

A Técnica é um conjunto de ligações.

A Técnica é um conjunto de ligações, por isso o que fazem as técnicas matemáticas e digitais é explorar e intensificar a nossa potência de ligação. Por detrás da intensificação da nossa relação com o telemóvel ou com as redes de computadores está a potência e a complexidade das nossas ligações uns com os outros. Dada a infinidade das máquinas que se espalharam pelo mundo, autores como Marx e Heidegger tentaram reduzir a “técnica” à “tecnologia”, acreditando que assim poderiam circunscrever a sua força. Mas vivemos no delírio de grandiosidade de achar que as máquinas que extraímos da Natureza representam o nosso domínio sobre ela. Cada máquina que extraímos acrescenta, modifica o mundo, mas no Ocidente estivemos sempre presos a uma visão instrumental que diz que as máquinas são meros utensílios. Mas veja-se como o automóvel, como a técnica nos escapa sempre: é fácil aprender a conduzir um carro, a “dominar” a máquina, nas não somos capazes de resolver os problemas de trânsito, os acidentes, a poluição… não da mesma maneira. A ideia de instrumento que punha tudo à nossa disposição deixou de funcionar.

Daí a importância de não confundir “máquinas” com “técnica”.

Acredito que precisamos de aprender a amar as máquinas, desenvolver com elas uma “filia”, uma amizade.

Mas o que é o Apocalipse se não uma forma de impedir os outros de pensar, pois o medo não permite o diálogo, deixa-nos desmunidos perante as mudanças do Real.

Um óbice evidente é fazer a IA uma questão terminante, exigindo ser-se a favor ou ser contra. A IA e as suas máquinas relacionam-se com muitas outras, como as ligadas à energia ou à computação, bem como dispositivos históricos ligados ao trabalho, à guerra, à invenção, às artes, etc. É da criação de combinações mais potentes que tudo depende e é preciso intervir sobre as suas ligações, lutando contra as mais perigosas, as mais indignas, em favor de outras formas mais livres, justas ou belas.

A obra de arte é sempre uma forma de abertura, porque tudo o que acontece tem a potência de transformar, de alterar o Real, seja em grande ou pequena escala. Se toda a coisa adicionada ao mundo tem um poder de alteração a arte é, acima de tudo, um trabalho que tem a alteração como substância necessária. Daí a necessidade libertá-la dos moralismos e da submissão a programas, pois é única forma de ação onde tudo pode ser possível.

Para mim é importante não ser abstrato, nem essencialista, nem totalizante.

Como disse Giordano Bruno, “pensar é especular com imagens”.

Para mim a constelação parece-me melhor porque respeita a empiricidade selvagem do real, consegue articular conceitos, objetos e imagens a partir da “imagem” que constitui, e que é sempre nova e única. A constelação é aquela que mais está atenta a algo que é essencial que são as ligações.”

José Bragança de Miranda, Entrevista de Joana Emídio Marques, no Observador.

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Nada a dizer.

Vim aqui dizer-vos que não tenho nada a dizer. Não tenho nada a dizer sobre os extraordinários livros que tenho lido, nem das músicas boas que tenho ouvido, nem sobre as conversas profundas que se têm desenrolado, nos sítios mais inesperados. Não tenho nada a dizer sobre o sol quente que me bronzeou a pele hoje, nem sobre o que descobri na caminhada de ontem. Também não vou dizer nada sobre o que aconteceu este fim-de-semana em Lisboa, sempre entusiasmante. Talvez pudesse dizer alguma coisa sobre as visões cinematográficas que tenho tido ultimamente, e das bandas sonoras que as acompanham. Mas também não o vou fazer. Não vou dizer nada sobre como tenho acordado, o que faço à noite, ou de madrugada. Muito menos direi alguma coisa sobre as minhas tardes, e sensações extasiantes que tenho tido no meu corpo. Não sei bem quando é que isto aconteceu, deixar de me interessar dizer. Mas tenho a impressão que foi um crescendo de prazer. Quanto menos tenho para dizer, mais já senti tudo.

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Mudar de vida.

Queremos mudar de vida. Mudar de lugar, de par, de trabalho. Comer melhor, descansar mais, enrijecer o corpo, começar uma obra. Reformar a nossa visão do mundo. Fazer uma revolução pessoal. Sermos nós próprios. Tornarmo-nos naquilo que queremos ser. Ir em busca de uma vida nova.Ultrapassamos as barreiras exteriores, fazemos os preparativos, compramos todos os apetrechos, erguemos a cabeça, enchemos o peito de ar, mas, chegado o momento da mudança, qualquer coisa resiste. Paralisamos. Afinal, não fazemos parte da minoria privilegiada que consegue dar o grande salto. Parece haver uma força superior que nos amarra a uma vida que não queremos ter.

Entre o desejo de mudança e a inércia que nos imobiliza, o que fazer?

Antes de mais, é necessário começar por resistir às injunções vazias de mudança. O “coaching” moderno e os gurus do desenvolvimento pessoal apelam à transformação total, à reprogramação cerebral – “repita três vezes em frente ao espelho: eu sou bonito, eu sou inteligente, eu consigo” – e dão-nos receitas rápidas para mudanças radicais, que funcionam como dietas ioiô: depois de um imenso esforço de três dias, regressamos aos velhos hábitos e sentimo-nos ainda mais miseráveis do que se não tivéssemos feito nada. A lavagem cerebral não só não comporta uma mudança real, como aumentará a angústia existencial.

O apelo ao renascimento é muito sedutor. Apagamos tudo o que fomos e transformamo-nos noutra pessoa. Mas, além de ser ilusório, faz parte de uma ideologia neoliberal que se concretiza na alienação do indivíduo. Em ambientes íntimos ou públicos, todos dizem que temos que mudar. Nas empresas, ouvimos discursos que solicitam personalidades flexíveis, autónomas e que sejam capazes de reinventar-se sem cessar. Flexível para ser lucrativo, adaptado para querer consumir, autónomo para não precisar de proteção laboral. O indivíduo transformado será, assim, um indivíduo suficientemente enfraquecido para incorporar os interesses do outro, aqui, do capital.

Por isso, o segundo passo para a mudança é não querermos mudar. O que procuramos realmente não é tornarmo-nos noutra pessoa mas sobretudo podermos ser nós próprios. Encontrar o nosso eu perdido no meio de tantas apropriações exteriores. O desejo de mudança significa que não somos o que queremos ser mas o que outros querem que nós sejamos. Espinosa disse que a servidão é deixar-se habitar pela exterioridade. Devemos opor-nos a tudo o que possa tirar a nossa existência. “A felicidade consiste na pessoa poder conservar o seu eu.”

A resistência às coações exteriores faz-se por duas vias: a manutenção de espaços de respiração e o exercício. É necessário reaprender o silêncio, a velha tática que nos permite ver os desejos intrínsecos, identificar as ameaças da alienação e reconhecer as nossas fontes de alegria. Seja através da meditação, da música ou das artes plásticas, para nos ouvirmos teremos de nos abster de falar.

Reconquistar-se e melhorar-se também exige disciplina. No livro Tens de Mudar de Vida, Peter Sloterdijk escreve que o “o ser humano não está tão possuído por demónios como por automatismos. Não são os maus espíritos que o colocam à prova. São as rotinas e a inércia que o agarram ao chão e o deformam.” Para nos desacorrentarmos da vida que não queremos ter, devemos substituir os maus hábitos – os arquitectos invisíveis das nossas vidas - por bons, e repeti-los com rigorosa regularidade, até que se tornem automáticos e, finalmente, profundamente reformadores.

Desenganem-se os que pensam que este é um apelo espartano. Só com consistência é possível mudar. Mas que seja através de pequenas metas, fáceis de repetir e sedimentar. Cossery, um adepto da indolência, escrevia apenas uma linha por semana. Com essa regularidade, publicou oito belos livros. A criação de uma nova vida não é, pois, um acto heróico, mas a execução constante, mesmo que ínfima, do exercício que nos torna naquilo que queremos ser.

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Gota a gota.

Todos os dias me perguntam quando é que escrevo um livro. E eu respondo sempre: quando tiver tempo e me apetecer. Com o trabalho, a casa e a comida para fazer, sobra-me quase nada. Para esse problema, tenho uma mezinha. Sempre que começo a angustiar pela falta de tempo para escrever, abro As imagens de pensamento, do Walter Benjamin, na parte que diz:

Uma eficácia literária significativa só pode nascer de uma rigorosa alternância entre acção e escrita. Terá de cultivar e aperfeiçoar, no panfleto, na brochura, no artigo de jornal, no cartaz, aquelas formas despretensiosas que se ajustam melhor à sua influência sobre comunidades activas do que o ambicioso gesto universal do livro. Só esta linguagem imediata se mostra capaz de responder activamente às solicitações do momento. As opiniões estão para o gigantesco aparelho da vida social como o óleo para as máquinas: ninguém se aproxima de uma turbina e lhe verte óleo para cima. O que se faz é injectar algumas gotas em rebites e juntas escondidos que têm de se conhecer bem.

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